Poucos se deram conta de que no bojo da discussão que envolve o marco temporal está o ressurgimento de uma antiga polêmica travada entre SAVIGNY e IHERING, dois genais juristas alemães. Relembremos o que cada um deles pensava acerca da posse, mas acrescentaremos um autor nessa polêmica, EDUARD GANS, outro jurista alemão e que é injustamente esquecido quando se trata dessa polêmica.

Para SAVINGY, a posse é o poder  que a pessoa possui de livremente dispor de uma coisa, seja para dela se utilizar, seja para defender a sua posse de quem a queira desrespeitar. Trata-se de um poder físico (o “corpus”), associado a uma vontade (“animus”, que é a vontade materializada no comportar-se como se proprietário da coisa fosse. Sem esses dois elementos, não haveria posse segundo SAVIGNY, que, aliás, foi ministro da justiça nos anos 1840 na Prússia.

Perceba o leitor que SAVIGNY compreendia a posse como um fato, e não como um direito, o que dava espaço (e poder) aos senhores feudais da época para manter suas propriedades, já que tinham sobre essas áreas o poder físico, tanto quanto se comportavam como seus donos.

O primeiro a atacar a posição de SAVIGNY foi EDUARD GANS, professor na Universidade de Berlin e, aliás, amigo de HEGEL. GANS afirmava que SAVIGNY incidia em uma confusão entre um fato natural e um fato legal, e que o fato da posse, enquanto puro fato, não se transformava em um direito, senão no momento em que o direito positivo assim o estabelecia.

Foi nesse contexto que surgiu a posição de IHERING, para quem bastava o “corpus” para que se caracterizasse a existência da posse, porque lhe parecia que o elemento intencional (o querer ser dono da coisa) seria imanente ao exercício da posse. Mas faltava algo, que GANS havia percebido. Com efeito, não basta que alguém exerça um poder físico sobre uma coisa, ou mesmo que se comporte como dolo. É indispensável  que o direito qualifique esse fato como um “fato legal”. É o direito, portanto, que faz surgir a posse enquanto um fato legal, dizia GANS com razão.

Podemos assim compreender o que decidiu o STF acerca do marco temporal, quando rejeitou a tese (baseada na posição de SAVIGNY) de que a demarcação das terras indígenas somente poderia se dar em face daquelas terras que estivessem, em 5 de outubro de 1988, a ser ocupadas pelas comunidades indígenas. Esse mero fato não é um “fato legal”, como decidiu o STF, baseando-se, pois, na construção de IHERING acerca da posse, mas sobretudo naquilo que defendeu GANS, no sentido de que é o Direito que cria a posse, e se a Constituição de 1988 estabelece que são terras indígenas, é isso que deve prevalecer, e não o mero fato da ocupação das área

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