É da tradição bíblica, surgida com SÃO PAULO, a compreensão do papel da alegoria na hermenêutica cristã. Disso nos fala o filósofo francês, PAUL RICOEUR em “Prefácio a Bultmann”, que integra sua indispensável obra, “O Conflito de Interpretações: Ensaios de Hermenêutica”: “O termo ‘alegoria’ só possui, aqui [referindo-se ele a uma passagem da “Epístola aos Gálatas”], uma relação de semelhança literária com a alegoria dos gramáticos, de que Cícero nos diz que ‘ela consiste em dizer uma coisa para fazer entender outra’. Mas, enquanto que a alegoria pagã servia para conciliar os mitos com a filosofia e, por conseguinte, para reduzi-los enquanto mitos; a alegoria paulina – e as de Tertuliano, bem como as de Orígenes, que delas dependem – é inseparável do mistério do Cristo. Estoicismo e platonismo fornecerão apenas uma linguagem, até mesmo uma sobrecarga comprometedora e extraviadora”.
No campo da Hermenêutica jurídica, não se costuma dar grande importância à alegoria, tratada como se não existisse, ou como se fosse incompatível com o Direito. Mas temos um exemplo que demonstra como a “alegoria” está presente nas normas jurídicas. E o exemplo se refere a uma norma de nossa constituição: a que trata dos requisitos para que alguém possa ser indicado ao cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal.
Com efeito, pelo enunciado normativo, diz-se que são dois esses requisitos: que o candidato possua um “notável saber jurídico”, e que, aliado a esse ímpar conhecimento, tenha uma reputação ilibada. Não há no texto da Constituição de 1988 qualquer referência ao conteúdo desses conceitos, que assim surgem indeterminados, como, por exemplo, o requisito quanto ao “notável saber jurídico”, pois como se o pode aferir?
Pois bem, caro leitor, está aí um perfeito exemplo de que como a alegoria deve ser levada em consideração no terreno da Hermenêutica jurídica, porque, como observou CÍCERO, a “alegoria” consiste em dizer uma coisa para fazer entender outra. Assim, quando o texto da Constituição de 1988 fala em “notável saber jurídico”, deve-se considerar a presença da alegoria, na medida em que o que quis o Legislador dizer não é isso, senão que o candidato deva ser confiável e leal.
SÃO PAULO, na “Epístola aos Gálatas”, a que nos referimos acima, diz algo que podemos aplicar à norma constitucional em questão: “Essas coisas foram ditas alegoricamente”. Acerca da norma constitucional que trata dos requisitos ao cargo de ministro do STF, devemos dizer o mesmo: “Essas coisas, esses requisitos, foram ditas alegoricamente”.