Em 1967, o filósofo francês, GUY DEBORD, antecipando-se aos fatos e por eles não desmentido, publicou a sua obra mais importante, “A Sociedade do Espetáculo”, escrita sob a inspiração de uma percuciente observação de FUERBACH feita no prefácio de seu livro “A Essência do Cristianismo”:

E sem dúvida o nosso tempo … prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser… Ele considera que a ilusão é sagrada, e a verdade é profana. E mais: a seu solhos o sagrado aumenta à medida que a verdade decresce e a ilusão cresce, a tal ponto que, para ele, o cúmulo da ilusão fica sendo o cúmulo do sagrado”. 

Isso conduziu DEBORD a refletir sobre como a sociedade de então – a de 1967 – vivia de uma representação de imagens que não correspondia à verdade, como se fosse um “espetáculo”. Esta, aliás, é  a “tese 1” do livro de DEBORD: “Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação”. 

Seja por seu ângulo de abordagem, seja em especial por não possuir formação jurídica, ou ainda pelo fato de que o Poder Judiciário não tinha, na década de sessenta na França e a rigor na grande maioria dos países, uma grande projeção na vida concreta das pessoas, o fato é que DEBORD não pôde refletir sobre o papel que o Direito estaria a desempenhar na “sociedade do espetáculo”. Propomo-nos a fazer aqui essa análise, seguindo de perto as lúcidas e afiadas constatações feitas por DEBORD, cuidando aplicá-las ao Direito, em especial sobre como os operadores do Direito amoldaram as suas até então herméticas condutas àquilo que a sociedade do espetáculo exige, que é  a representação da realidade como se o Direito, ele próprio, a tenha criado.

Eis aí logo de saída um aspecto que merece uma atenta observação, e que diz respeito a uma característica toda própria do Direito e que o torna especialmente submetido ao fenômeno descrito por DEBORD: é que o Direito opera com construções que ele próprio cria, dentro de uma realidade que é apenas jurídica. Recordemos, a título de exemplo, de como o Direito brasileiro por exemplo tratou durante muitos anos a concubina, como se ela fosse para efeitos jurídicos apenas uma empregada de seu companheiro, resistindo o Direito o quanto pôde a reconhecer se tratasse de algo muito semelhante ao casamento e que por isso deveria receber um tratamento jurídico semelhante, senão que igual ao que o casamento recebia. O jurista KARL ENGISH, ao tratar da Heurística jurídica, já havia percebido essa qualidade especial do Direito em criar a sua própria realidade.  Poderíamos dizer, seguindo DEBORD, que o Direito tem a grande capacidade de fazer uma “inversão concreta da vida (…), criando um movimento autônomo do não vivo”.

Andando o tempo, de 1967 para cá, percebemos como essa inata qualidade do Direito contribuiu  em larga escala para que aquilo que DEBORD descreveu como a “sociedade do espetáculo” tornasse-se ainda mais evidente em nossos tempos, em que não importa a realidade, senão que a imagem que nós construímos dela, o que evidentemente abrange a “realidade jurídica”. Obviamente que por detrás da “sociedade do espetáculo” há o poder e a dominação, a que MICHEL FOUCAULT prestou redobrada atenção.

Mais uma vez  uma aguda observação de DEBORD vem a calhar para aquilo que forma a decisiva contribuição do Direito para que se mantenha a “sociedade do espetáculo”, já agora em níveis muito mais requintados do que existiam em 1967:

Considerado em sua totalidade, o espetáculo é ao mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente. Não é um suplemento do mundo real, uma decoração que lhe é acrescentada. É o que âmago do irrealismo da sociedade real. Sob todas as suas formas particulares  – informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto de divertimentos -, o espetáculo constitui o modelo atual da vida dominante na sociedade. É a afirmação onipresente da escolha já feita na produção, e o consumo que decorre dessa escolha. Forma e conteúdo do espetáculo são, de modo idêntico, a justificativa total das condições e dos fins do sistema existente. O espetáculo também é a presença permanente dessa justificativa, como ocupação da maior parte do tempo vivido fora da produção moderna”. 

Censurava-se a KELSEN por ele ir muito longe com seu Formalismo Jurídico, em que a realidade era praticamente extraída do campo do Direito. Mas diante de uma sociedade do espetáculo como a temos hoje, cada dia mais “espetaculosa”, pode-se dizer que a ficção que KELSEN defendia era coisa de criancinha.

DEBORD jactanciava-se de ser um dos pouquíssimos autores que poderia afirmar não ter sido desmentido pelos fatos: “Não estou me referindo a ser desmentido cem ou mil vezes, como os outros, mas a nem uma única vez”. O Direito lhe dá total razão.

 

 

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