Há ramos do direito que, no Brasil, parecem infensos ao controle de constitucionalidade, como esse controle não existisse, ou não pudesse ser feito. Dentre esses ramos, está sem dúvida o direito civil, sobretudo quando o tema discutido é convizinho ao direito do consumidor. Raras, raríssimas são as decisões judiciais que iniciam o exame do tema pelo controle (difuso) de constitucionalidade. Ficam essas decisões apenas na seara do direito civil, ainda que reconheçam que há, envolvida na relação contratual, aspectos que a poderiam qualificar como de consumo. Ainda assim, essas decisões não cuidam examinar a constitucionalidade daquilo sobre o que as partes contrataram, como se esse controle estivesse circunscrito aos ramos do direito público, olvidando, pois, que a Constituição de 1988 confere especial proteção jurídica às relações de consumo, a impor o controle de constitucionalidade sobre o objeto do contrato.
Vejamos o caso da chamada “taxa de fruição”, que é um tipo de encargo comumente inserido pelas empresas que comercializam lotes não edificados. Em contratos de compromisso de compra e venda envolvendo esse tipo de lote, as empresas invariavelmente embutem cláusula que prevê a cobrança da “taxa de fruição”, que incide, segundo o que se prevê no contrato, se o comprador desiste da compra, e mesmo que o lote tenha permanecido não edificado até o momento em que a desistência é manifestada. Sustentam as empresas que, se antes da “Lei do Distrato” (Lei federal 13.786/2018), poder-se-ia questionar a incidência da “taxa de fruição”, agora, em face da nova lei, legitimou-se a cobrança.
Pois bem, nas ações em que se discute acerca da “taxa de fruição”, é incomum que a decisão judicial examine se a “Lei do Distrato” é ou não constitucional. Essa é a importante premissa da qual o julgamento deve partir. Sob esse enfoque, analisemos aqui essa Lei.
Com efeito, prevê o artigo 32-A da lei federal 6.766/1979, com a redação que lhe foi dada pela lei federal 13.786/2018, a “Lei do Distrato”:
“Art. 32-A. Em caso de resolução contratual por fato imputado ao adquirente, respeitado o disposto no § 2º deste artigo, deverão ser restituídos os valores pagos por ele, atualizados com base no índice contratualmente estabelecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, podendo ser descontados dos valores pagos os seguintes itens:
I – os valores correspondentes à eventual fruição do imóvel, até o equivalente a 0,75% (setenta e cinco centésimos por cento) sobre o valor atualizado do contrato, cujo prazo será contado a partir da data da transmissão da posse do imóvel ao adquirente até sua restituição ao loteador;
II – o montante devido por cláusula penal e despesas administrativas, inclusive arras ou sinal, limitado a um desconto de 10% (dez por cento) do valor atualizado do contrato;
III – os encargos moratórios relativos às prestações pagas em atraso pelo adquirente;
IV – os débitos de impostos sobre a propriedade predial e territorial urbana, contribuições condominiais, associativas ou outras de igual natureza que sejam a estas equiparadas e tarifas vinculadas ao lote, bem como tributos, custas e emolumentos incidentes sobre a restituição e/ou rescisão;
V – a comissão de corretagem, desde que integrada ao preço do lote.
- 1º O pagamento da restituição ocorrerá em até 12 (doze) parcelas mensais, com início após o seguinte prazo de carência:
I – em loteamentos com obras em andamento: no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias após o prazo previsto em contrato para conclusão das obras;
II – em loteamentos com obras concluídas: no prazo máximo de 12 (doze) meses após a formalização da rescisão contratual.
- 2º Somente será efetuado registro do contrato de nova venda se for comprovado o início da restituição do valor pago pelo vendedor ao titular do registro cancelado na forma e condições pactuadas no distrato, dispensada essa comprovação nos casos em que o adquirente não for localizado ou não tiver se manifestado, nos termos do art. 32 desta Lei.
- 3º O procedimento previsto neste artigo não se aplica aos contratos e escrituras de compra e venda de lote sob a modalidade de alienação fiduciária nos termos da Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997”.
Sobretudo ao dispor sobre a taxa de fruição, deve ser considerada como abusiva, por colocar, sem justa razão, em desvantagem exagerada o adquirente de bem imóvel objeto de contrato de compromisso de compra e venda, o que está em evidente descompasso com o regime jurídico-legal de proteção estabelecido pelo Código de Defesa do Consumidor, lembrando que essa proteção tem matriz constitucional.
Daí porque se há reconhecer que o conteúdo e o alcance da regra do artigo 32-A da lei federal 6.766/1979 criaram um injustificado regime de discrímem em favor das incorporadoras e administradoras de bens imóveis, colocando os adquirentes em uma posição contratual desvantajosa além de um limite razoável, a ponto de se poder afirmar que essa norma, criada pela lei federal 13.768/2018, teve por objetivo obnubilar na prática as vantagens que os consumidores haviam, com muita luta, obtido quando conseguiram que fosse aprovado o Código de Defesa do Consumidor, diploma legal que, aliás, vem enfrentando, dia-a-dia, um hercúleo desafio quando a manter a integralidade de seu texto, tal como fora ideado e colocado em vigor a partir de 1990. Recentemente, surgiu a lei que se tornou conhecida como “A Lei do Superendividamento” (lei federal 14.181/2021), que, a pretexto de querer proteger o consumidor, em verdade o desprotege, submetendo-o a medidas que são de interesse exclusivo do credor, como se dá com o plano de pagamento embutido no “processo de repactuação de dívidas”.
E o mesmo sucedeu com a “Lei do Distrato”, como assim se tornou conhecida a lei federal 13.786/2018, que fez acrescer à lei do parcelamento do solo urbano o artigo 32-A, suprimindo garantias que de há muito tinham sido reconhecidas em favor dos adquirentes de bens imóveis objeto de contratos de compromisso de compra e venda, nomeadamente quanto aos valores que lhes devem ser restituídos nas hipóteses de rescisão do contrato.
Trata-se, pois, do mesmo fenômeno que fez surgir a “Lei do Endividamento”, que é apenas o solapar o alicerce do Código de Defesa do Consumidor, o que comprova quão acertado estava MARX em sua percuciente observação quanto à relação que existe e que deve ser percebida pelos operadores do Direito entre a infraestrutura e a superestrutura, e como aquela (a infraestrutura), de natureza essencialmente econômica, busca a todo momento afetar a superestrutura jurídica, materializada no direito positivo, como ocorre com leis econômicas, produzidas por quem defende um Estado absolutamente liberal.
Leis que reproduzam a base econômica, impactando a superestrutura naquilo que se mostre necessário para que prevaleça a base econômica, e não os direitos subjetivos que, incorporados ao direito positivo, integram a superestrutura jurídica de um país. Recordemos do que escreveu LOUIS ALTHUSSER a respeito:
“Qualquer pessoa pode compreender facilmente que esta representação de toda a sociedade como um edifício que comporta uma base (infraestrutura) sobre a qual se erguem os dois ‘andares’ da superestrutura, é uma metáfora, muito precisamente, uma metáfora espacial: uma tópica. Como todas as metáforas, esta sugere, convida a ver alguma coisa. O quê? Pois bem, precisamente isto: que os andares superiores não poderiam ‘manter-se’ (no ar) sozinhos se não assentassem de fato na sua base.
A metáfora do edifício tem portanto como objetivo representar a ‘determinação em última instância’ pelo econômico. Esta metáfora espacial tem por efeito afetar a base de um índice de eficácia conhecido nos célebres termos: determinação em última instância do que se passa nos ‘andares’ (da superestrutura) pelo que se passa na base econômica”. (“Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado”, tradução por Joaquim José de Moura Ramos, p. 26-27, Editorial Presença – Portugal – Livraria Martins Fontes – Brasil).
O que justifica a tática empregada recentemente em alguns diplomas legais no Brasil, tática que consiste em solapar as garantias reconhecidas aos consumidores em normas legais que compõem a superestrutura jurídica, mas não por meio da revogação dessas normas legais, o que se revelaria bastante difícil de se alcançar, senão que pela criação de normas que esvaziam de sentido e de função as normas de proteção a direitos, como se dá em especial com a “Lei do Distrato”, que, a pretexto de regular a atividade econômica dos empreendimentos imobiliários, aniquilou em verdade o direito dos adquirentes, previstos no Código de Defesa do Consumidor, colocando esses adquirentes em uma posição desproporcional, ou seja, aquém de um mínimo razoável de proteção jurídica.
Do que se deve concluir que é de todo irrelevante tenha a “Lei do Distrato” previsto a incidência da “taxa de fruição”, porque essa Lei é, antes de tudo, inconstitucional.