Desde sua criação, a ABL – Academia Brasileira de Letras está diante de um dilema: escolher os quarenta imortais apenas dentre destacados escritores, ou os escolher também com base noutros predicados. Prevaleceu a ideia de que esses critérios poderiam se alternar, ou se mesclarem nalgumas situações, o que deu origem à ideia de instituir para cada uma das quarenta cadeiras a figura de seu respectivo patrono, além de, vez por outra, escolher um imortal que tenha algum vínculo com a Literatura, ou mais precisamente com a vida literária, ampliando-se esse conceito conforme o necessário para se justificar uma escolha.
Essa mescla de critérios, ou mesmo essa mixórdia de critérios, justificou a escolha de muitos nomes que não eram e nem jamais o poderiam ser senão que personagens efêmeros na Literatura brasileira, e alguns que sequer poderiam ser associados à escrita. Mas não se pode deixar de reconhecer que a rigidez do critério poderia mesmo esvaziar a ABL, e mesmo, em determinados momentos históricos, obstar que se alcançasse o número de quarenta imortais, diante da escassez de grandes escritores no Brasil.
Poucos sabem que GETÚLIO VARGAS foi um imortal da ABL. Outro presidente, JOSÉ SARNEY também o foi. Para a escolha de ambos não prevaleceu evidentemente a qualidade de seus escritos. Aspectos políticos determinaram essas escolhas, também como aspectos de outra natureza podem justificar a eleição de alguns imortais. Mas a ABL precisava desses nomes, como esses nomes também precisavam da ABL. Havia ali uma troca, diversamente do que se deu, por exemplo, com a eleição de GUIMARÃES ROSA e de CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, escritores cuja grandeza foi emprestada à ABL.
A disputa pela imortalidade travada recentemente entre o conhecido cartunista, MAURICIO DE SOUZA, e o filólogo, RICARDO CAVALIERE, nome conhecido apenas no meio acadêmico, demonstra como esse dilema permanece vivo, e em certa medida tanto melhor que assim o seja, porque ao menos a existência da ABL pode ser lembrada aos brasileiros, em especial em um momento em que a grande literatura, e a literatura de qualidade, está esquecida.
Pois bem, entre escolher um nome que traria positiva publicidade à ABL, e o nome de um acadêmico, a ABL decidiu prestigiar a Ciência, mas não propriamente a Literatura, entendida esta com a representação de uma narrativa que conduza o leitor a mundos que ele, fabulando com o escritor, pode chegar, e não necessariamente apenas pelo texto, mas pela junção de desenhos a textos curtíssimos, caso dos gibis, que estão na memória afetiva de várias gerações de brasileiros, transformando muitos deles em leitores de uma grande literatura, depois de terem sido apresentados ao mundo da imagem-texto.
HOUAIS, o conhecido dicionarista, era um filólogo, e foi eleito pela ABL, não propriamente porque era filólogo, mas porque era um grande tradutor (traduziu ULISSES, de JOYCE), além de ter exercido a diplomacia. AURÉLIO BUARQUE DE HOLANDA, outra dicionarista, não era filólogo, e também foi um imortal. MAURICIO DE SOUZA lida à sua maneira com as palavras, com curtíssimas palavras que, por uma espécie de mágica, associando-se às imagens, fazem com o leitor as desenvolva, extraindo um sentido todo próprio à narrativa, que o leitor cria. MAURICIO DE SOUZA não deixa de ser um filólogo, se considerarmos que a Filologia também se ocupa da literatura e da cultura de um povo.
Esperemos que MAURICIO DE SOUZA renove a sua candidatura em breve, quando outra poderá ser a solução ao eterno dilema com o qual a ABL convive. E quem sabe ele não poderá contar em um gibi essa aventura, imortalizando-a com o uso de sua personagem MÔNICA, fazendo o papel de candidata à ABL. Não há dúvida de que MÔNICA, uma menina brava e decidida, mas dotada de leveza, é a personagem adequada para contar essa história. E de todo o modo, mesmo que MAURICIO DE SOUZA não venha a ser eleito, a ABL, por meio do gibi, ficará na memória afetiva de muitos de seus leitores, o que já valeu a pena.