O processo julgado ontem pelo STF acerca da vacinação para a “Covid” permite ao leitor compreender como opera e como deve operar o princípio da proporcionalidade. Um caso em concreto sempre é útil para demonstrar a aplicação de uma teoria.
Decidiu o STF, por 10×1, que a vacinação, conquanto não seja obrigatória, deve acarretar, contra quem não se dispuser a recebê-la, determinadas restrições, desde que essas restrições estejam previstas em lei, editada para essa finalidade por Estados-membros e municípios. (O STF não fixou que medidas restritivas serão essas, tendo cuidado do tema apenas genericamente.)
No caso em questão, encontramos de um lado o direito fundamental à saúde, individual e pública, e ainda a posição jurídico-estatal que impõe ao Poder Público em geral a obrigação de zelar pela manutenção da saúde pública, o que o obrigaria assim a propiciar a todos, segundo o artigo 196 da CF/1988, o direito a receberem a vacinação para a “Covid”. De outro lado, encontramos o direito à liberdade (e em qualquer conflito entre direitos a liberdade aparece), ou seja, o direito que a Constituição de 1988 prevê de se poder invocar outros direitos subjetivos para não ser obrigado a fazer o que não se queira, o que no caso da vacina significa reconhecer o direito de não se submeter à vacina, ainda que comprovadamente eficaz. Alguém, por exemplo, poderia, invocando o direito à liberdade, afirmar que não existe comprovação em 100% de que a vacina seja eficaz, ou que o possa ser, ou ainda que a sua crença religiosa não se harmoniza com a vacinação, entre outros direitos, todos decorrentes da liberdade, sendo essa o reflexo de um princípio que integra a nossa CF/1988.
Configura-se, e se configurou no caso julgado pelo STF, um conflito não entre regras, mas entre princípios. E como diz ROBERT ALEXY, a forma como se soluciona um e outro desses conflitos é diversa. No conflito entre regras, a solução passa necessariamente por declarar uma das regras inválidas, de modo que o direito subjetivo que se baseava nessa mesma regra não é reconhecido como válido. Já no conflito entre princípios – afirma ALEXY -, a solução é outra, porque, em havendo colisão entre princípios (como no caso enfrentado pelo STF), um dos princípios deve ceder passo diante de outro, embora se reconheçam como existentes, válidos e eficazes todos os princípios em conflito, como também os direitos subjetivos deles decorrentes. Isso explica a razão de o STF ter decidido que a vacinação não pode ser obrigatória, dado que reconheceu como válido o princípio da liberdade em favor de quem não queira receber a vacina. Mas como observa ALEXY, sob certas circunstâncias (as circunstâncias do caso em concreto), um princípio deve ceder passo a outro princípio, solucionando-se dessa forma o conflito. Afirma ALEXY: “Isto é o que se quer dizer quando se afirma que nos casos concretos os princípios têm diferente peso e que prevalece o princípio com maior peso. Os conflitos de regras levam-se a cabo na dimensão da validez; a colisão de princípios – como somente pode entrar em colisão princípios válidos – tem lugar para além da dimensão de validez, a dimensão de peso”. (tradução nossa, in “Teoría de los Derechos Fundamentales”, p. 89, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, Madrid, 2001).
Destarte, diante da colisão entre princípios, decidiu o STF que deve prevalecer o direito fundamental que protege a saúde individual e pública e a posição jurídica do Poder Público em vacinar, cedendo passo, segundo as circunstâncias em concreto analisadas pelo STF, o princípio da liberdade e os direitos com base nela invocados. Ceder passo, importante observar, não equivale a dizer que o STF não reconheceu a liberdade, senão que exatamente o contrário: reconheceu-a como existente, válida e eficaz, mas como menor valor do que o valor dado ao direito à saúde pública.
Desde 1958, quando pela primeira vez o princípio da proporcionalidade foi aplicado (e isso ocorreu na Alemanha), a doutrina e a jurisprudência vêm realizando um profícuo trabalho de desenvolvimento do princípio, tanto na compreensão das formas de controle que estão embutidas no princípio da proporcionalidade (meios, fins, ponderação), quanto em medidas que podem ser adotadas quando se valoram princípios e direitos, ou seja, as medidas restritivas que decorrem da prevalência de um princípio em face de outro. São essas medidas restritivas, engendradas pela doutrina e jurisprudência, que foram consideradas pelo STF, e que poderão ser estatuídas na legislação a ser editada por Estados-membros e municípios.
Restará analisar, a seu tempo, se as medidas restritivas são proporcionais ou não, em que se aplicará novamente o princípio da proporcionalidade.
Dizer-se, pois, que o STF decidiu que a vacinação é obrigatória é incorreto, dado que reconheceu a liberdade daquele que não a queira receber, conquanto venha a suportar restrições decorrentes da prevalência do direito de proteção à saúde pública.