Muitos têm a impressão de que a constitucionalidade de uma lei, uma vez reconhecida como tal, não pode ser modificada, como se esse controle de constitucionalidade ocorresse apenas em um determinado momento, a ocorrer normalmente quando a lei entra em vigor. O mesmo ocorreria, pois, com a declaração de inconstitucionalidade, o que significaria que, reconhecida essa inconstitucionalidade, a coisa julgada material obstaria qualquer modificação. Olvida-se, contudo, que, embutido no controle de constitucionalidade de uma lei, formando a sua essência, está a atividade de interpretação, e que seu resultado – o resultado da interpretação – pode se modificar porque a realidade material subjacente terá se alterado. Mas não se pode excluir a possibilidade de que, conquanto se tenha modificado a realidade material subjacente, isso não altera  o resultado da interpretação, senão que o robustece por motivos que, andando o tempo, ou se tornaram ainda mais nítidos, ou estão a merecer uma proteção  mais efetiva.

Embora com com certo atraso, a hermenêutica jurídica acabou incorporando aos seus domínios aquilo que a Filosofia havia descortinado, sobretudo pelo contributo de SCHLEIERMACHER,  DILTHEY e BULTMANN, autores, sobretudo o primeiro, que demonstraram que há uma dependência mútua entre a hermenêutica e a dialética, no bojo do que se deve entender que, em toda interpretação, surgem entre relações entre o universal e  o particular, o que conduz à conclusão de que as condições temporais sob as quais uma interpretação foi feita, essas condições podem ser modificar, e com isso o resultado da interpretação também se modifica, e isso em especial no campo da hermenêutica jurídica, pois como destacou SCHLEIERMACHER em discurso acadêmico de 1829, em que tratou do conceito de hermenêutica, a hermenêutica jurídica lida,  na maior parte das vezes, com a determinação da extensão da lei, isto é, com a relação dos princípios gerais com o que neles não foi concebido claramente, o que significa reconhecer que o contexto temporal possui grande importância no campo da hermenêutica jurídica, porque o juiz, em face de um princípio jurídico cujo conteúdo nunca pode ser definido, deve extrai-lo com base nas circunstâncias que então se lhe colocam no momento em que realiza essa interpretação, sobretudo no campo do controle de constitucionalidade, que, assim, pode apresentar resultados hermenêuticos diversos conforme a passagem do tempo e a modificação da realidade material subjacente.

Sob esse enfoque, consideremos a lei federal 1.079/1950, que, tipificando os crimes de responsabilidade atribuídos a ministros do Supremo Tribunal Federal, estabeleceu a especial natureza jurídica desse processo, fixando a competência exclusiva do Senado Federal para julgá-la. Devemos observar que a Constituição de 1946, por seu artigo 100, estatuíra que os ministros do Supremo Tribunal Federal poderiam ser processados  por crimes de responsabilidade, assim processados e julgamentos pelo Senado Federal, e como aquela Constituição não havia tipificado tais crimes, nem cuidado prever a forma desse processo especial, remeteu-se à legislação ordinária o tratamento dessa matéria, surgindo assim a Lei federal 1.079/1950.

Devemos lembrar, e enfatizar que a Constituição de 1946 se tornou a primeira experiência concreta de nosso país no sentido de moldar um Estado democrático de Direito à feição do modelo liberal de Estado, também é de relevo observar que o Brasil vivia uma importância experiência política depois que, com agruras, conseguira derrubar o “Estado Novo”, como ficara conhecido o movimento ditatorial instaurado com a chegada ao poder de Getúlio Vargas. Essa informação história é necessária para que se possa bem compreender em que contexto histórico surgiu a Constituição de 1946 e daquilo que ela pretendia modificar em nossa realidade socio-político-jurídica.

A Constituição de 1946, além de manter as conquistas sociais que vinham da década de trinta, ela tornava claro que a democracia passava a ser uma nova realidade e que isso provocava não apenas uma nova concepção político-jurídica, mas o surgimento de novos direitos fundamentais. Conquanto revogada com o golpe de 1964, a Constituição de 1946 deixava importantes marcos que insistiam em se manter, a demonstrar que a democracia, embora submetida a marchas e contramarchas, resistia, como é exemplo a Lei federal 1.079, a que havia tipificado os crimes de responsabilidade atribuídos a ministros do Supremo Tribunal Federal e do julgamento a que devem ser submetidos por esses crimes.

Para além de destacar o ambiente em que a Lei federal 1.079/150 surgiu, e dos valores democráticos que ela evidentemente implantou, também se deve considerar a especial natureza jurídica do processo, mas essencialmente político, na medida em que a Constituição havia definido o Senado Federal como competente para o julgamento dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Esse aspecto é de grande relevância, na medida em que não se trata de um processo judicial, senão que, como dito, de um processo de feição específica, o que justifica que a legitimação ativa tenha sido conferida a todo cidadão, o que, por óbvio, era (e é) consentâneo com a finalidade da Lei e da proteção a um então embrionário Estado Democrático de Direito, que é a de conferir um sistema eficaz de fiscalização sobre o trabalho dos ministros do Supremo Tribunal Federal, não havendo aí nenhuma inconstitucionalidade, como, aliás, ao longo do tempo se reconheceu.

Destarte, há que se concluir que aquilo que, ao longo do tempo, de um acentuado tempo aliás, fez reconhecer como constitucional a Lei federal 1.079 no que diz respeito à legitimação ativa para o processo por crime de responsabilidade atribuído a ministro do Supremo Tribunal Federal no bojo de um processo de feição essencialmente política, que essa constitucionalidade é  especialmente fortalecida pelo nosso  regime democrático,  hoje muito mais fortalecido do que existia naqueles idos tempos de 1950, quando o Brasil acabava de se livrar de uma ditadura.

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