Ao tempo de ANATOLE FRANCE (1844-1924),  dois juízes franceses, que tinham atrás de si uma carreira já bastante longa, haviam convidado o conhecido escritor francês para um colóquio sobre um tema de que então se ocupava a opinião pública e que interessava de perto a magistratura: seria de fato necessário criar-se um código de ética aos magistrados? O convite a ANATOLE FRANCE, que havia se tornado uma celebridade em virtude de sua atuação no caso “Dreyfus”, devia-se sobretudo  ao fato de que ele, em alguns escritos, havia  se ocupado da magistratura e do que devem ser seus predicados, e que, em especial em seu  conto “O Caso Cranquebile”, havia feito uma contundente crítica ao sistema judiciário francês, demonstrando um profundo conhecimento sobre o tema. O autor de “Os Deus têm sede” também cunhara uma frase que se tornara emblemática: “Eu não teria muito medo das más leis, se elas fossem aplicadas por bons juízes”. 

FRANCE a princípio optou por ouvir a posição de cada um dos juízes, que, desde logo, haviam concordado com que se devesse exigir dos juízes um rigor ético maior do que se deve aplicar ao cidadão comum. Mas divergiam quanto à necessidade de que se devesse criar um código. Um dos juízes assim havia expresso sua posição:

“– Conquanto reconheça  que é justo, tanto quanto  razoável exigir dos magistrados um zelo ainda maior com a ética, o que de resto é próprio a uma magistratura que deve ser tão pura quanto devem ser os deuses, para usarmos aqui uma ideia que me acorre do que o nosso caro ANATOLE FRANCE escreveu em seu conhecido livro, não me parece exista a necessidade de que tenhamos um código, quando todos os juízes sabem de seus deveres. Ou os cumprem porque a consciência, ela própria, a isso os obriga, ou será de todo ineficaz querer lhes incutir esse tipo de obrigação apenas porque um código assim o estabelece”.

O outro juiz ripostou: “– A ética me faz lembrar a moral e como esta nos conduz, ou nos deve conduzir à religião, acredito piamente de que se deve pensar em um código de ética a ser aplicado aos juízes, algo como um manual simples e objetivo,  no qual se vede, por exemplo, que o juiz possa julgar uma causa em que atua o advogado com o qual esteve em uma vilegiatura de férias, ou que ao juiz se proíba terminantemente possa decidir um processo em que atua o advogado de sua esposa. Reconheço que são hipóteses, porque não me pareça que algum juiz que esteja nesse tipo de situação possa ter julgado uma causa com esse tipo de situação. Felizmente, não temos episódios dessa infeliz natureza. Mas como estamos aqui no terreno das hipóteses, tenho que as considerar”;

ANATOLE FRANCE então interveio: “– Vossas Excelências têm experiência na difícil arte de julgar. Vivenciaram situações nas quais poderiam ter decidido de uma forma ou de outra, tantas são as brechas que a lei contém, e sabem que apenas a sua consciência lhes pudera dar a melhor decisão ao caso, entendendo-se como tal aquela que apenas vossa consciência lhes ditou. Sabem Vossas Excelências, eméritos e probos juízes, que qualquer influência externa pode ser prejudicial, quando não se deva dizer criminosa, e que por isso o magistrado prudente é aquele que, em sua vida profissional, assume como algo indispensável a sua solidão.  Está aí um dos fadários impostos ao juiz: o de decidir sozinho, ainda quando esteja a decidir em um tribunal. Parece-me, com todo o respeito, que seria de todo desnecessário um código de ética, não fosse o fato de que o juiz, antes de ser juiz, é um ser humano, propenso assim a descuidos, pecadilhos e mesmo a veniais pecados, como pode suceder a qualquer ser humano”.

E acrescentou: “Para o genial KANT, a moralidade, ou nasce da autonomia do ser humano em fixar a si próprio leis morais, que as tratará de cumprir, ou não se tratará de moralidade. Mas KANT certamente estava a pensar em um mundo ideal, que, aliás, suponho não existisse nem mesmo ao tempo de KANT. Nosso mundo, e será sempre esse o mundo, é composto por seres humanos concretos aos quais se deve estabelecer o que podem e o não podem fazer, o que a experiência do código penal demonstrou ser necessária, embora nem sempre eficiente, tanto são os crimes que acontecem, conquanto exista o código penal. Melhor, pois, que um código fixe aos juízes o que eles não devem fazer, como, por exemplo, manterem relação próxima com a parte do processo que lhes caiba decidir, ou com o advogado que nesse processo atue. Deve o código prescrever, por exemplo, que os juízes não devem realizar congressos que sejam patrocinados por empresas que são litigantes nos processos em que esses mesmos juízes vão julgar. Coisa que, reconheço, deva ser considerada como uma exceção, tão absurda é a hipótese que levanto aqui. Mas o código penal também trata de condutas que, à partida, revelavam-se como impossíveis de ocorrer, mas o gênero humano demonstrou que não há limites quando se trata de transgredir a norma legal. O homem não crê no que é, crê no que ele deseja que seja. Parece-me, pois, que um código de ética imposto aos magistrados talvez faça com que alguns poucos juízes recalcitrantes passem a crer na lei expressa, com a qual de resto estão acostumados a lidar”.

Os dois juízes convenceram-se de que ANATOLE FRANCE tinha razão, e se encarregaram de levar adiante a ideia.

 

 

 

 

 

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