Nascemos e vivemos sob a ideia de que não se pode e não se deve discutir uma decisão judicial, senão que apenas cumpri-la. Trata-se de um axioma que está presente na civilização desde que ela se entende como tal, e que contribui em grande escala para que assim se mantenha. Mas é importante observar que esse axioma contém duas partes. E ao poder interessa que não percebamos que existem essas duas partes, e menos ainda o de que entre elas não há uma relação lógica. Como nosso objetivo é idêntico àquele de FRADIQUE MENDES, lendário personagem de EÇA DE QUEIROZ, que primava por encontrar a real realidade das coisas, revelemos ao nosso leitor a realidade daquilo que forma esse axioma.
Do fato de se dever cumprir uma decisão judicial não decorre que a devemos ter como necessariamente justa ou correta. Significa apenas que a devemos cumprir porque é assim que deve ser, para que a segurança jurídica possa manter a sociedade em bom funcionamento, tal como o poder espera que ocorra. Sob esse enfoque, não importa o que foi decidido pelo juiz, e a principal finalidade do axioma, tal como foi estruturado, é a de que sejamos convencidos de que se a decisão judicial transitou em julgado, e se a devemos cumprir, não interessa saber se o juiz fez uma correta interpretação das normas legais, ou se ele poderia ter chegado a uma outra decisão, porque somos conduzidos a supor que o juiz chegou à única interpretação possível, e que nesse caminho até ela ele não se deixou influenciar por sua visão de mundo.
É na segunda parte do axioma que se esconde o que o poder não quer que seja revelado, porque disso depende que o axioma continue a ser respeitado. Ao poder interessa, pois, que a sociedade pense que a lei é uma só, que existe uma só interpretação, e o que foi interpretado pelo juiz não poderia ser diferente do que foi. Como se tudo não passasse de uma operação lógica. O cidadão comum é assim levado a acreditar que, se o juiz decidiu de uma determinada forma, isso é assim porque deveria ser assim.
Mas o segredo foi revelado por KELSEN, quando, na última parte de sua “Teoria Pura do Direito”, escreveu sobre a interpretação, em especial sobre a interpretação que é feita pelos juízes no processo. Diz KELSEN que, quando se pensa na interpretação judicial, deve-se imaginar a existência de uma espécie de moldura, dentro da qual cabe muita coisa, para muito além daquilo que o Legislador pensou quando criou a norma. Portanto, o juiz, ele próprio, pode colocar nessa moldura o que ele, juiz, quer, porque é possível pensar a figura do juiz sem o fazer dotado da liberdade de pensar e de decidir. Esse é o risco imanente à função do juiz, e a sociedade deve assumir esse risco, confiando que sejam escolhidos, seja por concurso, seja por indicação política nas situações em que a Constituição o preveja, tão somente aqueles que sejam realmente vocacionados para o exercício da magistratura, o que passa por saber bem quais são os limites ético-legais que se impõem a um juiz, e como isso é de fato importante no campo da interpretação.
Como observa KELSEN, o juiz pode, a pretexto de que está apenas interpretando uma norma legal, inverter seu objetivo, criando, ele próprio, uma norma diversa daquela que o Legislador criou. Assim, se a norma legal veda uma determinada isenção, o juiz pode concedê-la sob o argumento de que está a fazer uma interpretação “mais razoável” da norma legal. E o mesmo pode ocorrer, já no campo do direito penal e do processo penal, quando o juiz decide soltar um réu acusado pelo grave crime de tráfico de entorpecentes, quando, interpretando a norma legal, afirma que o réu é tão-somente um inocente usuário de drogas, muito embora preso portando quilos delas. Tudo afinal é uma questão de interpretação.