Aprende-se muito mais do que se imagina por meio dos congressos jurídicos. Mas não por aquilo que é discutido. Aprende-se muito mais, com efeito, pelo que não se diz, pelo que falta dizer, ou seja, pelas entrelinhas. O ressumado esforço de muitos dos juristas que participam desses colóquios jurídicos no deixarem de discutir o que realmente essencial é bastante ilustrativo.
Em um recente congresso realizado sob os auspícios de entidades que congregam os interesses das empresas que atuam no ramo da construção de loteamentos, colocou-se sob discussão se os contratos firmados por essas empresas com pessoas que querem adquirir um lote de terreno, se esses contratos não deveriam ficar imunes ao Código de Defesa do Consumidor, aplicando-se-lhes apenas a “Lei do Distrato”, como é conhecida a Lei federal 13.786/2018. Os juristas presentes foram unânimes em reconhecer que o Código de Defesa do Consumidor atrapalha os negócios dos loteadores, e que por isso não deve ser aplicado.
Sobre o fato, deveras significativo, de que os organizadores do referido congresso se esqueceram de convidar quem pudesse fazer defesa dos consumidores, também merece destaque que os juristas ali presentes tenham deixado de analisar se a referida “Lei do Distrato” não seria inconstitucional, tema que toca considerar antes de tudo, antes mesmo de se saber se o Código de Defesa do Consumidor tem aplicação.
Mas se os juristas ali não viram a questão sob essa importante perspectiva, nós aqui o devemos fazer, para que o leitor possa ver a questão sob diversos ângulos.
Prevê o artigo 32-A da lei federal 6.766/1979, com a redação que lhe foi dada pela lei federal 13.786/2018:
“Art. 32-A. Em caso de resolução contratual por fato imputado ao adquirente, respeitado o disposto no § 2º deste artigo, deverão ser restituídos os valores pagos por ele, atualizados com base no índice contratualmente estabelecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, podendo ser descontados dos valores pagos os seguintes itens:
I – os valores correspondentes à eventual fruição do imóvel, até o equivalente a 0,75% (setenta e cinco centésimos por cento) sobre o valor atualizado do contrato, cujo prazo será contado a partir da data da transmissão da posse do imóvel ao adquirente até sua restituição ao loteador;
II – o montante devido por cláusula penal e despesas administrativas, inclusive arras ou sinal, limitado a um desconto de 10% (dez por cento) do valor atualizado do contrato;
III – os encargos moratórios relativos às prestações pagas em atraso pelo adquirente;
IV – os débitos de impostos sobre a propriedade predial e territorial urbana, contribuições condominiais, associativas ou outras de igual natureza que sejam a estas equiparadas e tarifas vinculadas ao lote, bem como tributos, custas e emolumentos incidentes sobre a restituição e/ou rescisão;
V – a comissão de corretagem, desde que integrada ao preço do lote.
- 1º O pagamento da restituição ocorrerá em até 12 (doze) parcelas mensais, com início após o seguinte prazo de carência:
I – em loteamentos com obras em andamento: no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias após o prazo previsto em contrato para conclusão das obras;
II – em loteamentos com obras concluídas: no prazo máximo de 12 (doze) meses após a formalização da rescisão contratual.
- 2º Somente será efetuado registro do contrato de nova venda se for comprovado o início da restituição do valor pago pelo vendedor ao titular do registro cancelado na forma e condições pactuadas no distrato, dispensada essa comprovação nos casos em que o adquirente não for localizado ou não tiver se manifestado, nos termos do art. 32 desta Lei.
- 3º O procedimento previsto neste artigo não se aplica aos contratos e escrituras de compra e venda de lote sob a modalidade de alienação fiduciária nos termos da Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997.”
Ocorre, entretanto, que as deduções, previstas nessa norma legal e incorporadas ao contrato em questão, devem ser consideradas como abusivas, por colocarem, sem justa razão, em desvantagem exagerada os autores como adquirentes do lote objeto de contrato de compromisso de compra e venda, e que por isso, aplicando o artigo 51, inciso IV, do Código de Defesa do Consumidor, devem ser declaradas essas cláusulas contratuais como nulas de pleno direito.
Há se reconhecer que o conteúdo e o alcance da regra do artigo 32-A da lei federal 6.766/1979 criaram um injustificado regime de discrímen em favor das loteadoras e administradoras de bens imóveis, colocando os adquirentes em uma posição contratual desvantajosa além de um limite razoável, a ponto de se poder afirmar que essa norma, criada pela lei federal 13.768/2018, teve por objetivo obnubilar na prática as vantagens que os consumidores haviam, com muita luta, obtido quando conseguiram que fosse aprovado o Código de Defesa do Consumidor, diploma legal que, aliás, vem enfrentando, dia-a-dia, um hercúleo desafio quando a manter a integralidade de seu texto, tal como fora ideado e colocado em vigor a partir de 1990. Recentemente, surgiu a lei que se tornou conhecida como “A Lei do Superendividamento” (lei federal 14.181/2021), que, a pretexto de querer proteger o consumidor, em verdade o desprotege, submetendo-o a medidas que são de interesse exclusivo do credor, como se dá com o plano de pagamento embutido no “processo de repactuação de dívidas”.
E o mesmo sucedeu com a “Lei do Distrato”, como assim se tornou conhecida a lei federal 13.786/2018, que fez acrescer à lei do parcelamento do solo urbano o artigo 32-A, suprimindo garantias que de há muito tinham sido reconhecidas em favor dos adquirentes de bens imóveis objeto de contratos de compromisso de compra e venda, nomeadamente quanto aos valores que lhes devem ser restituídos nas hipóteses de rescisão do contrato.
Trata-se, pois, do mesmo fenômeno que fez surgir a “Lei do Endividamento”, que é apenas o solapar o alicerce do Código de Defesa do Consumidor, o que comprova quão acertado estava MARX em sua percuciente observação quanto à relação que existe e que deve ser percebida pelos operadores do Direito entre a infraestrutura e a superestrutura, e como aquela (a infraestrutura), de natureza essencialmente econômica, busca a todo momento afetar a superestrutura jurídica, materializada no direito positivo, como ocorre com leis econômicas, produzidas por quem defende um Estado absolutamente liberal.
Leis que reproduzam a base econômica, impactando a superestrutura naquilo que se mostre necessário para que prevaleça a base econômica, e não os direitos subjetivos que, incorporados ao direito positivo, integram a superestrutura jurídica de um país. Recordemos do que escreveu LOUIS ALTHUSSER a respeito:
“Qualquer pessoa pode compreender facilmente que esta representação de toda a sociedade como um edifício que comporta uma base (infraestrutura) sobre a qual se erguem os dois ‘andares’ da superestrutura, é uma metáfora, muito precisamente, uma metáfora espacial: uma tópica. Como todas as metáforas, esta sugere, convida a ver alguma coisa. O quê? Pois bem, precisamente isto: que os andares superiores não poderiam ‘manter-se’ (no ar) sozinhos se não assentassem de fato na sua base.
“A metáfora do edifício tem portanto como objetivo representar a ‘determinação em última instância’ pelo econômico. Esta metáfora espacial tem por efeito afetar a base de um índice de eficácia conhecido nos célebres termos: determinação em última instância do que se passa nos ‘andares’ (da superestrutura) pelo que se passa na base econômica”. (“Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado”, tradução por Joaquim José de Moura Ramos, p. 26-27, Editorial Presença – Portugal – Livraria Martins Fontes – Brasil).
O que justifica a tática empregada recentemente em alguns diplomas legais no Brasil, tática que consiste em solapar as garantias reconhecidas aos consumidores em normas legais que compõem a superestrutura jurídica, mas não por meio da revogação dessas normas legais, o que se revelaria bastante difícil de se alcançar, senão que pela criação de normas que esvaziam de sentido e de função as normas de proteção a direitos, como se dá em especial com a “Lei do Distrato”, que, a pretexto de regular a atividade econômica dos empreendimentos imobiliários, aniquilou em verdade o direito dos adquirentes, previstos no Código de Defesa do Consumidor, colocando esses adquirentes em uma posição desproporcional, ou seja, aquém de um mínimo razoável de proteção jurídica.
Compreendendo a realidade material subjacente em sua verdadeira natureza, e qual foi o verdadeiro objetivo da “Lei do Distrato”, há que se reconhecer a inconstitucionalidade dessa Lei.