Há entre o Direito e Literatura uma semelhança tão grande que a nossa vã filosofia não pode compreender. Em 1939, quando WALTER BENJAMIN, pensando sobre a Literatura, disse que, ao contrário do que então defendia a crítica tradicional, o estudo de uma obra literária deve ser pensado “como uma espécie de chave, confeccionada sem a menor ideia da fechadura, na qual, um belo dia, ela poderia ser introduzida”. Como observa JOSÉ GUILHERME MERQUIOR, na introdução de “O Elixir do Apocalipse”, em que faz a citação do referido texto de WALTER BENJAMIN, a obra literária, a cada geração que a lê, recebe uma significação substancialmente nova, o que faz com que o novo leitor não sinta tanto a realidade do autor que a escreveu e do tempo em que foi escrita, senão que esse novo leitor pode sentir a sua própria realidade presente na interpretação que faz da obra literária. Não será o mesmo o que acontece com a interpretação jurídica das normas legais? A interpretação feita a cada nova geração de juristas e juízes não constitui uma espécie de chave sem fechadura?
Consideremos a nossa Constituição em vigor, cujo texto é essência, sobretudo quanto às normas de direito fundamental, aquele escrito em 1988, quando a nossa realidade era outra. Pensemos, a título de exemplo, nas liberdade de expressão e de imprensa como elas existiam àquela altura, em que os jornais e os meios tradicionais de imprensa dominavam toda a comunicação. Para que alguém pudesse estar bem informado, era necessário que tivesse acesso àqueles meios de comunicação. A norma fundamental de proteção à liberdade de expressão e de imprensa foi pensada e escrita pelo Legislador segundo aquela realidade e segundo aquele tempo. Evidentemente, que a nossa realidade hoje é outra, muito diferente daquela existente no final dos anos oitenta. Hoje, as redes sociais tornaram-se o principal meio de acesso à informação. Então, como interpretar a norma de direito fundamental, ideada para aquela realidade? E como pensar as liberdades de expressão e de imprensa em face de uma realidade bastante diferente daquela de 1988?
Aproveitemo-nos da lição de WALTER BENJAMIN, que, pensada para a Literatura, cai como uma luva ao Direito, cujas normas legais constituem uma “chave”, destinada a uma fechadura que não existe, mas que pode ser criada a cada momento em que uma nova geração de juristas e de juízes é chamada a interpretar um enunciado normativo. O que se deve entender hoje por “liberdade de expressão”, ou de “imprensa”, é aquilo que o novo jurista, o novo leitor pois, pode sentir de sua própria realidade.
E o mesmo vale, naturalmente, para outros direitos fundamentais, como o direito à saúde previsto artigo 196 da Constituição. Que sejam, esses direitos fundamentais, considerados como “chaves” que, se não poderiam abrir fechaduras ao tempo em que as normas foram criadas, podem agora abrir novas “fechaduras”, papel que incumbe sobretudo aos juízes em seu importante papel de intérprete da Constituição.