Não foi um jurista, e a rigor não poderia mesmo ser um jurista, o “inventor” daquilo que hoje os tribunais constitucionais da Europa Ocidental, sobretudo o da Alemanha, fartamente se utilizam para estabelecer os limites da liberdade, quando ela está a colidir com outros direitos, o que ocorre com uma frequência maior do que podemos supor. Pois foi um filósofo, ISAIAH BERLIN (1909-1997), vindo da Letônia, mas cuja carreira acadêmica ocorreu toda na Inglaterra, que descortinou aquilo que os juristas não viam, e não poderiam mesmo ver.
Com efeito, a liberdade é um conceito compósito, formado pelas diversas formas pelas quais ela pode ser expressa, e dentre essas formas, a liberdade de expressão é com certeza uma das mais importantes, considerando a extensão de seus efeitos, dando origem ao conceito de “opinião pública”, palavra-chave em um Estado de Direito que se possa qualificar como “democrático”. Esta é a razão, pois, de ter sido um filósofo, e não um jurista, que engendrou um mecanismo – o princípio da proporcionalidade -, pelo qual se pode, racionalmente, solucionar os conflitos que envolvem a liberdade, sobretudo a liberdade de expressão.
Como observa HABERMAS, do conceito de “opinião pública” surgiu o de “esfera pública burguesa”, e esse conceito (ou como diz HABERMAS em seu consagrado livro “Mudança Estrutural da Esfera Pública”), essa categoria começou por ser explorada “naquele vasto campo outrora tradicionalmente imputado à política”, cujos limites tornaram-se estreitos demais para que pudesse nos dar uma definição, algo segura, do que é e do que deve ser o conceito de “opinião pública”, sem o que não há como se estabelecer um guia seguro à fixação dos limites da liberdade de expressão, e antes mesmo desses limites, a essência desse direito, ou seja, dessa liberdade.
E precisamente porque se trata de um conceito formado por diversos aspectos, por trás dos quais estão ciências tão variadas entre si, como a da Política, do Direito, da Sociologia, é que apenas um filósofo do porte de ISAIAH BERLIN poderia ter criado algo como o princípio da proporcionalidade, ao constatar como a liberdade está a colidir o tempo todo com outros direitos, e que isso ocorre em especial quando se cuida da liberdade de expressão.
Convidado para proferir palestras nos Estados Unidos, ISAIAH BERLIN, produziu um material até então inédito, cunhando os conceitos de “liberdade positiva” e “liberdade negativa”, a partir dos quais concebeu uma forma de solucionar racionalmente as colisões envolvendo a liberdade, para o que se deu a conformação, já no campo jurídico, do princípio da proporcionalidade, primeiro passo para que se completasse seu conteúdo com a identificação dos critérios do “meio”, do “fim” e da “ponderação”, tudo com a finalidade de, com a análise das circunstâncias do caso em concreto (sempre do caso em concreto), decidir-se acerca da posição jurídica que deva prevalecer.
E de um primeiro uso que se fez, na Alemanha, em um caso do direito penal, o princípio da proporcionalidade tomou corpo, sendo hoje, no âmbito dos tribunais constitucionais europeus, o instrumento (o único instrumento) pelo qual se podem solucionar os conflitos (cada vez mais frequentes) da liberdade em face de outros direitos.
Claramente sob a perspectiva do princípio da proporcionalidade é que o nosso Legislador criou a regra do artigo 19 da Lei do Marco Civil da Internet, ao dispor que: “Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário”.
Note-se que esse enunciado normativo começa exatamente com a ênfase ditada pelo “assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura”, para assim estabelecer que, apenas no caso em concreto, ponderadas as circunstâncias do caso em particular, é que se poderá definir se a liberdade de expressão prevalecerá ou não, não cabendo ao provedor da Internet o papel de censor, senão que lhe cabe respeitar o exercício da liberdade de expressão, que não prevalecerá apenas se o Poder Judiciário, na análise do caso em concreto, decidir o contrário.
Não há qualquer dúvida, pois, de que o Legislador fez aplicar o princípio da proporcionalidade, com o que protegeu eficazmente a liberdade de expressão, de resto como sói o deveria fazer dado que a Constituição de 1988 torna “livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (artigo 5o., inciso IX).
Vejamos que consequências adviriam, se outro fosse o objetivo do Legislador. O provedor da Internet, ele próprio, assumiria o papel de censor, e lhe caberia decidir o que poderia ou não ser publicado nas redes sociais, assumindo um papel que nem mesmo o Estado brasileiro quis assumir, tanto assim que vedou terminantemente a censura. E se o Estado brasileiro não pode impor a censura, por qual o provedor de Internet poderia exercer esse papel?
Ponderando os interesses em conflito, o Legislador brasileiro, fazendo aplicar, como dito, o princípio da proporcionalidade, pensou como ISAIAH BERLIN, para estabelecer que a única forma racional de solucionar problemas envolvendo o conflito que envolve a liberdade de expressão e outros direitos não é senão que fazer aplicado o princípio da proporcionalidade.
Mas o princípio da proporcionalidade somente pode ser aplicado de acordo com as circunstâncias do caso em concreto. Não há como aplicá-lo genericamente, como se se tratasse de uma bula de remédio destinada a curar todos os males da sociedade. Empregar o principio da proporcionalidade de forma genérica acabaria por matar o paciente, a pretexto de pretender curar seus males. E o paciente nesse caso não é outro senão que a “opinião pública”, que, ao morrer, arrasta com ela a Democracia.