A impressão é a de que temos várias constituições de 1988, tantas são as leituras que dela são feitas. Se vamos, por exemplo, a FLORESTAN FERNANDES, que participou ativamente da construção do texto e pôde, com mão de mestre, retratar em seu indispensável livro “A Constituição Inacabada” como agiram os grupos econômicos, temos  não a impressão, mas a certeza de que a Constituição de 1988 poderia ter ido muito mais além do que foi na proteção dos direitos, quiçá os tornando menos refratários a interpretações que, como previu FLORESTAN, tratariam de eliminar aquelas conquistas, como ocorreu com a limitação aos juros imposta pela norma do artigo 192 da Constituição de 1988, jamais tornada norma real pela ação dos grupos econômicos.

Mas se, em lugar de FLORESTAN, lermos os economistas, a impressão é toda outra. Dizem eles, sobretudo a partir de ROBERTO CAMPOS, que a constituição de 1988 falou demais, criando um Brasil utópico, porque ele somente existia no texto da constituição de 1988, muito distante do Brasil real, que os economistas arvoram-se como se fossem eles, e apenas eles que sabem o que é essa realidade, como frequentemente se pode ler nos congressos em que o tema é invariavelmente o de que como a Constituição de 1988 atrapalha os negócios, como foi a conclusão a que se chegou no evento patrocinado pela confederação nacional das instituições financeiras, encerrado na última semana. Nos diversos painéis que tiveram lugar nesse congresso, ao qual, aliás, foram convidadas algumas autoridades públicas, não houve quem não reclamasse da segurança jurídica.

Mas de qual segurança jurídica eles falaram? Da segurança jurídica que, elogiada por muitos economistas, pôde impedir um golpe de estado? Da segurança jurídica que faz com que os bancos e instituições financeiras não suportem uma tributação que os possam fazer menos poderosos? Da segurança jurídica que, protegendo a liberdade de expressão, permite que congressos dessa natureza ocorram, e que deles participem inclusive autoridades públicas?

Não, certamente não é contra essas “seguranças jurídicas” que os conferencistas e os economistas em geral se insurgem. Eles reclamam de que o Poder Judiciário em muitas situações, interpretando as leis, como o Código de Defesa do Consumidor, dão decisões que reconhecem direitos aos consumidores e aos pobres de pedir, para nos utilizarmos de uma expressão do genial escritor português, RAUL BRANDÃO. Aí a segurança jurídica não é boa e precisa ser corrigida.

A rigor, não é a segurança jurídica que incomoda esses grupos econômicos (infelizmente, secundados por algumas autoridades públicas): o que os incomoda é a ideia de Democracia, na base da qual está a ideia de que os juízes e tribunais devem ser livres para interpretarem a constituição, e está exatamente nessa liberdade a maior proteção que os cidadãos podem ter. Algo como o que foi descrito por JACQUES RANCIÈRE em seu opúsculo, “O Ódio à Democracia”.

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