Há ainda muita coisa no Direito que faz lembrar aquela historieta, segundo a qual um passageiro em uma estação de trem do interior, vendo um episódio que lhe pareceu insólito, vendo, pois, o maquinista descer e bater com um pequeno martelo em uma das rodas do trem, perguntou-lhe por qual razão fazia aquilo, ao que o maquinista respondeu que já há trinta anos não deixava de ter aquele cuidado,  que, aliás, fora-lhe passado por um maquinista mais experiente, com quem ele aprendera seu ofício. O passageiro não se deu por satisfeito com a explicação e insistiu com a pergunta acerca da finalidade daquela ação. O maquinista, então, respondeu que embora há muito tempo executasse aquela ação, não atinava com o que responder, mas que de todo o modo lhe parecia bem que continuasse a fazê-lo, como um hábito adquirido e passado de geração a geração entre os maquinistas.

Há, pois, no Direito muita coisa que tem relação com essa historieta, porque, tanto quanto sucedia com aquele maquinista, os operadores jurídicos fazem também muitas coisas apenas pela força do hábito, sem jamais refletirem por qual razão o fazem.  Temos um exemplo tirado de um curioso episódio ocorrido na semana passada.

Em uma sessão de julgamento virtual, ou seja, em uma sessão em que as partes e os juízes estão todos diante de uma tela de computador, a uma distância segura para evitar qualquer animosidade, o advogado começou a fazer a sustentação oral, mas não foi a sua voz que foi reproduzida, mas sim uma voz que parecia vir do além, o que a princípio não causou surpresa, porque afinal a sessão de julgamento, ela própria, também vinha de longe.

Mas em um determinado momento os juízes se deram conta de que alguém, ou algo falava em nome do advogado, substituindo-o na sustentação. E, prontamente, os juízes censuraram o advogado, advertindo-o de que aquela conduta não era conforme o Direito, porque a sustentação oral somente pode ser realizada pelo advogado e por sua viva voz. O advogado, temeroso das consequências de sua conduta, imediatamente acionou o botão de seu aparelho celular, fazendo parar a sustentação  que, aliás, mostrava-se boa o suficiente para agradar, com menções bastante apropositadas à jurisprudência e doutrina. De todo o modo, pareceu ao advogado que seria mais inteligente não prosseguir com a sustentação por aquela forma. E a sessão voltou ao normal.

Mas não façamos como o maquinista. Não nos contentemos com o costume. Perscrutemos, pois, se há alguma vedação legal a que a sustentação oral possa ser realizada por meio da inteligência artificial? E a primeira pergunta que nos vem é o que é, em essência, a sustentação oral? E a resposta não pode ser outra que a de se tratar de um ato ocorrido durante uma sessão de julgamento em que o advogado, para tentar cativar a atenção dos juízes, e de os convencer, perora, ou seja, faz um breve discurso, limitado a um determinado tempo que a lei prevê. A lei, contudo, não vai além disso. Ela apenas fixa o tempo.

Assim, se a lei não proíbe, a conduta é permitida, diz o costume, ou mesmo mais que ele, porque a lei também tem essa mesma interpretação. De maneira que, se a lei não veda a que o advogado se faça substituir por uma outra pessoa na sustentação oral, também não proíbe que se faça uso da inteligência artificial, e a rigor se se a denomina de “inteligência”, melhor que se a possa utilizar em uma sessão de julgamento, em que muitas vezes o discurso do advogado não é dos mais inteligentes.

A propósito, se a Justiça, ela própria, já se deu por vencida, aceitando que os juízes possam contar com a inteligência artificial, por qual razão o advogado não poderia fazer o mesmo, dela se valendo na sustentação oral?

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