Ideado a partir da Constituição de 1988, a qual conferiu especial proteção jurídica ao consumidor, obrigando o Estado a implementar essa proteção, surgiu em 1990 o “Código de Defesa do Consumidor”, que está assim  prestes a completar 34 anos de existência, mas a cada dia mais enfraquecido. Segmentos poderosos da economia abandonaram, com efeito, seu propósito inicial, que se concentrava em duas frentes: a primeira no campo legislativo, em que buscavam revogar o Código de Defesa do Consumidor, ou ao menos mudar substancialmente suas disposições; a segunda frente se instalou, depois de um tempo, no campo do sistema judicial, e conquanto a princípio a eficácia dessa frente de abordagem do Código de Defesa do Consumidor pelo viés das poderosas empresas não se mostrasse eficaz, o tempo demonstrou que ela seria importante, sobretudo depois que o nosso Ordenamento Jurídico em vigor passou a prever as súmulas e teses vinculantes.

No campo do Poder Legislativo, os grupos econômicos perceberam que não havia deputado ou senador que se dispusesse a lançar qualquer proposta de revogação, ainda que parcial do Código de Defesa do Consumidor, em um fenômeno parecido com o que ocorreu com o SUS- Sistema Único de Saúde, que, se antes da pandemia, tinha de alguns deputados e senadores o apoio à sua extinção, inclusive com propostas legislativas, depois do que o Brasil vivenciou as inúmeras mortes causadas pela pandemia, aqueles deputados e senadores mudaram seu discurso, passando a apoiar o SUS, que assim por muitos anos à frente se livrou de qualquer risco de que venha a ser extinto. No caso do Código de Defesa do Consumidor, a importância conquistada por esse diploma legal, colocou-o em um status de algo sagrado, que se não pode modificar. Assim, os grupos econômicos perceberam que teriam que mudar de estratégia.

E para tanto se deram conta de que, se não era e não é possível revogar o Código de Defesa do Consumidor, pode-se adotar uma estratégia enviesada, em que parece que se está a fortalecer esse Código quando, em verdade, a intenção é solapá-lo.  A chamada “Lei do Superendividamento” é um exemplo dessa estratégia, e dela já cuidamos aqui em um outro texto, a que remetemos o leitor.

A propósito, teremos esta semana a entrada de uma nova lei que tem esse mesmo objetivo: destruir o sistema de proteção estabelecido pelo Código de Defesa do Consumidor. Entrará em vigor a nova lei do crédito, que vai suprimir a incidência da “Lei da Usura” sobre as relações entre as empresas. “Lei da Usura” que é de 1933, mas que tem se mantido como um importante pilar na proteção aos direitos subjetivos dos contratantes e dos consumidores em geral. Alguém poderia objetar que não se está aí nas relações de consumo, porque a novel lei vai regular as taxas de juros a aplicarem-se nas relações entre as empresas. Há, entretanto, por se considerar que a novel lei vai para além daquilo que formalmente enuncia, na medida em que há um outro objetivo que será alcançado, que é a de levar o Poder Judiciário como um todo a defender cada vez mais a prevalência da liberdade contratual, sobretudo no que diz respeito à definição da taxa de juros. O argumento dos poderosos setores da economia é de que quanto maior liberdade, maior a segurança jurídica, e quanto maior a segurança jurídica, menor a taxa de juros aplicada aos financiamentos. A Lei 14.905, que entra em vigor nesta semana, modifica o Código Civil em matérias sensíveis aos interesses dos grupos econômicos, como são as matérias relacionadas à correção monetária e juros

Argumento que acabou vencendo no sistema judicial brasileiro, mas não porque os juízes em geral tivessem se convencido de que as empresas são boazinhas, que a segurança jurídica é um valor em si. O convencimento veio de cima para baixo, e para isso foi de fundamental importância a ideia de que o nosso Ordenamento Jurídico deveria contar com as ferramentas das súmulas e teses vinculantes. Pois bem, os juízes foram “convencidos” de que a taxa de juros pode ser pactuada livremente, e que o Poder Judiciário não deve interferir nesse campo, algo que nem mesmo os liberais puros como FRIEDRICH HAYEK havia admitido, bastando ver como ele pensa o princípio da liberdade e suas consequências, e o que o Estado deve fazer nesse campo, entendendo-se como “Estado” também o Poder Judiciário. Assim é que, no Brasil, o consumidor pode ingressar com ação para discutir a taxa de juros aplicada em contrato bancário, mas perceberá que esse direito é apenas algo simbólico, tantas são as amarras de interpretação que foram impostas aos juízes pelas teses vinculantes, as quais, em geral, dizem que a liberdade de contratar é absoluta, com o que evidentemente o direito fundamental de proteção ao consumidor foi, na prática, esvaziado.

Vemos agora um outro efeito decorrente desse mesmo fenômeno. O mercado de plano de saúde tenta obter aquilo que os bancos conseguiram, ou seja, fazer com que teses vinculantes façam o papel da lei, retirando dos consumidores o direito de buscarem judicialmente aquilo que as operadoras de plano de saúde lhes nega: a efetiva proteção à saúde, que, aliás, é também um direito fundamental de matriz constitucional. Já se vê um movimento que tenta ludibriar a opinião pública com a falsa ideia de que as ações envolvendo planos de saúde estão em um número absurdo e que é necessário limitar de alguma forma o direito de ação. Alguém proporá, em breve tempo, uma tese vinculante que alcançará esse objetivo, o que de resto foi tentado há algum tempo quando se cogitou de se fixar uma tese vinculante que faria incorporar o entendimento de as operadoras estão obrigadas a fornecer apenas aquilo que contratado. Ou seja, de novo o mote da liberdade contratual, aplicada neste caso para restringir a liberdade do consumidor, diversamente do que se entendeu no caso dos contratos bancários, em face dos quais se entende que a liberdade para contratar é absoluta.

E com isso o Código de Defesa do Consumidor vai desaparecendo aos poucos.

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