Do processo judicial (e embora pense aqui  no processo civil, não é diverso o que sucede no processo penal), poder-se-ia afirmar ocorrer nele o que OSCAR WILDE escreveu no prefácio de seu livro mais conhecido, “O Retrato de Dorian Gray”: “Na realidade, a arte reflete o espectador, e não a vida”, o que no caso do processo poderia ser adaptado para se dizer que, “O processo não reflete a vida, senão aquilo que o juiz dessa vida vê, encarada sob a forma de uma linguagem”. 

Sim, o processo é pura linguagem, muito embora sejamos levados a supor que estejamos nele, no processo,  a lidar com a vida.  A vida está ali presente, mas não ela própria, senão que a vida como a linguagem a construiu e a estruturou sob a forma da linguagem.

No campo da Literatura, deveu-se sobretudo a um estudo mais profundo das obras de JAMES JOYCE, especialmente de seu livro “Finnegans Wake”, a descoberta, a princípio pelos semiólogos, depois pelos estudiosos da Literatura,  de como um livro pode ser escrito com base apenas na linguagem. E ainda uma outra descoberta, a de que o leitor, em verdade, está a ocupar o papel de um “releitor”, na medida em que lhe cabe percorrer um constante caminho entre o que leu no texto e o sentido que pôde, ele próprio o leitor, apreender do que leu.

Exatamente o que o que ocorre no processo judicial. O juiz, com efeito, não lida diretamente com a vida quando lê as peças elaboradas pelos advogados das partes. Estamos aí no terreno da linguagem pura, que vai aumentando em escala e intensidade quando o processo está em grau de recurso, porque o tribunal deve executar o papel de um “releitor”, visto que lhe cabe  ler o que o juiz escreveu na sentença, buscando apreender, em um outro momento temporal,  o sentido  expresso em uma linguagem, em uma pura linguagem.

Em 1922, JAMES JOYCE lançava seu livro “Ulisses”, e logo em seguida o crítico literário alemão, ERNST ROBERT CURTIUS (1886-1956), em um ensaio, cuidava observar quão difícil era ler um livro, como o de “Ulisses”, em que um lenço que cai em uma página, como por exemplo a de número 245, era um tema retomado por JOYCE apenas na página 385, obrigando o leitor a juntar ao menos dois fragmentos de tempo, para então poder alcançar um sentido daquilo que o autor escrevera, o que transformava o leitor em um “releitor”, descortinando-se ali um mecanismo de leitura mais amplo, como observa JOÃO ALEXANDRE ROSA no prefácio que escreveu para a tradução ao Português de “FINNEGANS WAKE”.

Precisamente o que um Tribunal faz quando está a julgar um recurso em processo judicial, executando, pois, o papel de “releitor”, ligando fragmentos de tempo registrados na sentença, para lhes dar um sentido: o sentido extraído de uma suposta realidade (sempre de uma suposta realidade), lida por meio de uma linguagem, que é a do juiz como autor da sentença.

E.T.: O problema é, como observa EDUARDO LOURENÇO que “A linguagem é antes a forma suprema de fazer evaporar a realidade, de a afastar de nós, de a perder, de suspender e desatar o cordão umbilical que a ela nos uniria (e une) se conseguíssemos silenciá-la. (…)”. (“Pessoa Revisitado”, p. 54).

 

 

 

 

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