Ao ingressar na carreira da magistratura, pelo que ansiava de há muito, aquele juiz, recém chegado à pequena cidade, lobrigava poder corrigir o mundo, ainda  que apenas aquele pequeno mundo que estaria sob sua jurisdição. Trataria logo de mandar prender os  criminosos, fosse qual fosse o crime, apreender os menores que estariam já a trilhar o caminho do mal e a internar compulsoriamente aqueles que estivessem a criar algum incômodo na cidade, além de outras necessárias providências reclamadas pelo senso de justiça. Acreditava o juiz que a magistratura fora criada exatamente para fazer justiça, e fazer justiça era tudo isso.

Em poucos meses, sua rigorosa atuação tornou-se conhecida na diminuta cidade. Insignificantes infrações não eram mais toleradas, e seus autores tinham de pronto a prisão decretada em processos que, de tão rápidos, não tinham lugar sequer para uma defesa, que, quando apresentada, não encontrava de parte daquele juiz qualquer compreensão.

Inúmeras prisões foram decretadas em um pequeno espaço de tempo, a ponto de o delegado registrar em uma comunicação oficial o inédito fato de a cadeia da cidade registrar uma superpopulação carcerária.

Um dos advogados mais antigos da cidade, surpreso com o que o que sabia insólito, resolveu questionar o juiz acerca do desmedido rigor com que aplicava a lei, argumentando que a lei, precisamente ela, é que não comportava o rigor com que estava a ser aplicada. Além de não ter sucesso em sua empreitada, o advogado  viu a sua conduta ser seriamente censurada pelo juiz, que, afirmando ter sido desagravado em sua atuação, fez comunicar o fato à associação de classe dos advogados.

O jornal da pequena cidade, em que escrevia um outro advogado suas crônicas daquele pequeno mundo forense,  acabou igualmente censurado, além de suportar multa em um valor que representava muito mais que seu faturamento anual. O jornal, que nascera muitos antes desse fato, fechou suas portas, obrigado ainda a publicar em seu último exemplar a sentença do juiz.

Não havia, portanto, qualquer parcimônia do juiz, que, sejamos justos,  estava convicto de que, além de aplicar a lei com rigor, fazia justiça.

Mas, andando o tempo, os recursos – e foram muitos os recursos interpostos – tinham sido julgados pelo tribunal e invariavelmente acolhidos. Assim como a cidade conhecia o rigor de seu juiz, o tribunal também passou a conhecê-lo bem, e a censurá-lo enfaticamente, o que fez com o que o juiz começasse a considerar seriamente se não era ele o problema, e não a cidade.

Foi a primeira vez em sua carreira que o juiz pensava seriamente no que estava fazendo. Antes fora  um autômato, tratando de aplicar a lei de forma mecânica, e apenas naquele momento é que pudera meditar sobre o conteúdo de suas decisões, vendo-as como extremamente injustas. E além de se convencer de que havia extrapolado seu poder,  sua consciência o puniu com um rigor ainda maior do que ele próprio adotava com as pessoas.

O sentimento do justo voltou-se contra ele próprio e esse foi o caminho do autoflagelo. Tanto quanto sucedeu com o doutor Simão Bacamarte no conhecido conto “O Alienista”, de MACHADO DE ASSIS, em um belo dia o delegado da cidade recebeu atônito um mandado de prisão contra o  juiz e assinado por ele próprio. O juiz ainda determinava a soltura de todos os presos, declarando-os inocentes.

A exemplo do médico do conto de MACHADO, o juiz chegara à conclusão de que ele era o único anormal na cidade.

 

 

 

 

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