Tantas são as disparatadas interpretações jurídicas de que tomo conhecimento diariamente, que arrisco dizer terá acontecido com os operadores do Direito positivo brasileiro um interessante fenômeno: aqueles que leram o livro “Obra Aberta”, escrita por UMBERTO ECO, em 1962, traduzida à Língua Portuguesa e aqui muito divulgada, tiveram a certeza absoluta de que a tese escrita pelo conhecido filósofo e semiólogo italiano caia com uma luva no mundo do Direito, tão a calhar viera para defender a posição daqueles que afirmavam, antes do livro de ECO, que o juiz era o leitor privilegiado da lei e que como tal podia, com grande liberdade, interpretá-la sem qualquer amarra, nem mesmo as postas (e não impostas) pelo texto.

UMBERTO ECO, preocupado com uma incorreta compreensão de sua tese e de suas ideias, interpretadas de modo diametralmente oposto ao que ele havia pensado e escrito, assumiu a inglória tarefa de passar parte de sua vida a tentar explicar a seus leitores o que ele verdadeiramente pensava acerca dos limites da interpretação, e do que  significava e deveria significar o título “Obra Aberta”.

Surgiu assim, no final dos anos oitenta, o que ele denominou de “semiótica ilimitada”, mas esse conceito infelizmente não se mostrou mais claro do que aquele primeiro. Os operadores do Direito estavam cada vez mais convencidos de que a interpretação de uma norma legal não possui critérios e que o juiz é livre.

UMBERTO ECO viu-se assim uma vez mais obrigado a esclarecer que “Dizer que a intepretação (enquanto característica básica da semiótica) é potencialmente ilimitada não significa que a interpretação não tenha objeto e que corra por conta própria. Dizer que um texto potencialmente não tem fim não significa que todo ato de interpretação possa ter um final feliz”.

ECO gostava de citar uma frase do filósofo e linguista búlgaro, TZVETAN TODOROV, que dizia, mas com malícia, que um texto é apenas um piquenique onde o autor entra com as palavras e os leitores com o sentido, o que, aplicado ao Direito, significa dizer que o processo judicial é o local em que o piquenique realiza-se, a lei entra com as palavras, e o juiz com o sentido que dessas palavras pode extrair com grande liberdade.

E assim é que ganhou corpo no mundo do Direito, em especial no Direito brasileiro, a tese erroneamente atribuída a UMBERTO ECO de que a interpretação das normas legais é “uma obra aberta”, que o juiz, a seu talante, constrói, e que por isso  o juiz tem o ilimitado poder de fazer várias coisas com as palavras que compõem uma norma legal, inclusive para as interpretar de modo totalmente diverso do que o texto queria dizer – e disse.

Preocupado com a incompreensão de sua tese e de suas ideias, UMBERTO ECO passou boa parte de sua vida tentando explicar que o ele defendia em seu livro “Obra Aberta” era que a interpretação tem critérios e que há limites ao intérprete, e que esses limites são impostos pela intenção do texto. Estou certo que UMBERTO ECO, ao menos no que diz respeito ao mundo do Direito e especialmente no Direito positivo brasileiro, não conseguiu grandes resultados, falecendo em 2016 com essa frustração.

Basta ver como são interpretados os textos legais no Brasil, em que o que prevalece é a intenção do juiz e não a intenção do texto. Como dizia RICHARD RORTY, que ECO citava, o intérprete “desbasta o texto até chegar a uma forma que sirva a seu propósito”. Exatamente como vemos acontecer com muitas interpretações que alguns juízes fazem dos textos legais.

Será necessário fazer com o livro de UMBERTO ECO o mesmo que foi feito com a “Teoria Pura do Direito”, escrita em sua versão original em 1934. KELSEN, até o final da vida, insistia em dizer que, em muitos pontos daquela sua Teoria, mudara radicalmente de pensamento ao escrever a “Teoria Geral das Normas”, e que por isso era  indispensável ao leitor conhecesse de ambas as obras, se quisesse saber o que ele, KELSEN, realmente pensava sobre o Direito. O mesmo, portanto, deve ser feito com o livro “A Obra Aberta” de UMBERTO ECO, que deve ser cotejada com o que ECO escreveu depois. Uma boa fonte de consulta para essa indispensável tarefa é a leitura do livro “Interpretação e Superinterpretação”, que conta com tradução para a Língua Portuguesa e está publicado pela editora Martins Fontes.

 

 

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