Os brasilianistas (como são conhecidos os estudiosos estrangeiros, historiadores, sociólogos, economistas, cientistas políticos que se interessam pelo Brasil como objeto de seu estudo), os brasilianistas, com efeito, certamente estão atentos a um interessante fenômeno que  ocorre no Brasil e que se instalou tão logo as eleições presidenciais foram concluídas.

Milhares de pessoas, no dia seguinte ao resultado do pleito eleitoral, saíram às ruas, instalaram-se defrontes a diversos quartéis das Forças Armadas, e estão ali manifestando seu inconformismo, não mais direcionado contra a validez do resultado das eleições, senão que agora contra a legitimidade do candidato eleito para presidir o país. Importante observar, e esse é o quid que particulariza esse fenômeno, em que houve uma rápida e quase que imperceptível passagem da discussão do terreno da validez do resultado das eleições para o da legitimidade da pessoa do eleito.

Essa rápida passagem da validez à legitimidade é que individualiza esse interessante fenômeno, que, conquanto tenha origem no campo exclusivamente da política, ultrapassou esses limites, o que inevitavelmente chegará em algum momento muito próximo  ao campo do Direito. Mas se deve considerar que a perspectiva da legitimidade do eleito a um cargo como o da presidente da república constitui um tema jurídico inédito, e como tal um grande desafio.

Os brasilianistas com certeza associarão esse fenômeno brasileiro a uma variação do instituto do “recall”, que foi introduzido nos Estados Unidos em 1911. A origem desse instituto, contudo, esta na Suíça. O “recall” funciona assim: o eleitorado, em perdendo a confiança no candidato que elegeu, faz convocar novas eleições para o mesmo cargo. De relevo observar que não se trata de um impeachment, nem da revogação do mandato com base em uma investigação, senão que no núcleo do “recall” está a legitimidade do eleito, mas analisada durante o curso do mandato, aferida de acordo com as ações e omissões de quem exerce o mandato público.

O fenômeno ora instado no Brasil guarda, portanto, semelhança com o “recall”, na medida em que em ambos está em causa a  questão da legitimidade, e não qualquer infração criminal ou administrativa de quem exerce o cargo político. Mas semelhança não quer dizer identidade, e entre o fenômeno em questão e o “recall” há uma importante diferença, na medida em que o presidente eleito sequer iniciou o exercício de seu mandato, e não se pode dizer, por óbvio,  que terá frustrado as expectativas da sociedade.

É exatamente essa diferença, aliás, que nos conduz a uma outra, também relevantíssima. É que, no caso do “recall”, é a sociedade (e não mais os eleitores) que estão a “convocar” de volta aquele que foi eleito, retirando-lhe o mandato por ausência de confiança. No caso do fenômeno que ora se instala no Brasil não se pode considerar, não em um primeiro momento, que se trate da sociedade, mas ainda dos eleitores, e daqueles eleitores que não reconhecem legitimidade ao eleito, conquanto não questionem a validez dos resultados. Mas em se tratando de um fenômeno que possui uma natureza essencialmente social, sempre é possível que o número daqueles que estejam a questionar a legitimidade do eleito sobre-exceda com o tempo a dos eleitores que no eleito não votaram, acabando por alcançar um público maior, e que pode representar uma parcela significativa da sociedade, que assim estaria a questionar a questão da legitimidade.

O país dividido de antes da eleição manter-se-ia dividido agora noutro terreno – no da legitimidade da pessoa do eleito -, havendo por se reconhecer que, em garantindo a nossa Constituição o pluralismo político (artigo 1o., inciso V), essa situação poder-se-ia juridicamente qualificar dentro da normalidade, o que significa dizer que não se trataria de um golpe ou algo do gênero, mas de uma discussão perfeitamente possível de ocorrer em nosso Estado Democrático de Direito, tal como a Constituição de 1988 o estruturou e ainda o estrutura.

A polarização, pois, estaria a criar o fenômeno da legitimidade, em circunstâncias que poderiam nos remeter ao que o conhecido brasilianista, THOMAS SKIDMORE, observou em seu livro “Brasil: De Getúlio a Castelo”, ao tratar da queda do governo Goulart em abril de 1964: “A polarização, tão evidente em março de 1964, tinha raízes bem mais profundas do que a controvérsia que cercava os atos de Goulart como presidente. Tanto os seus adeptos quanto os seus adversários (e, significativamente, muitos brasileiros politicamente ativos abominavam a dicotomia que os forçava a escolher entre os dois campos), encontravam-se diante de um sistema político cujas regras implícitas e bases sociais eles estavam já agora discutindo”. 

Essa passagem escrita por SKIDMORE poderia, em certa medida, descrever em linhas gerais o fenômeno atual acerca da legitimidade, em que subjaz na sociedade brasileira uma acentuada polarização, tanto quanto acontecia em 1964, e com um componente que, curiosamente, é o mesmo, mas em posição modificada: as Forças Armadas. Com efeito, em 1964, as Forças Armadas haviam participado ativamente da polarização, desencadeando a crise institucional que havia por derrubar Goulart, aliás sem qualquer participação popular direta. Agora, o fenômeno atual envolve de um modo pitoresco as Forças Armadas, a cujos quarteis milhares de pessoas acorreram para questionar a legitimidade do presidente eleito.

Voltemos ao campo do Direito. Nunca no Brasil pensou-se em incorporar  à sua legislação constitucional o instituto do “recall”, e por isso é  evidente que o nosso Direito positivo jamais terá se preocupado com o tema da legitimidade da pessoa de quem foi eleito, circunscrevendo sua análise à  validez dos resultados das eleições. Destarte, o fenômeno em questão traz ao nosso Direito positivo algo que lhe é totalmente desconhecido, e está aí uma questão que os estudiosos do Direito deverão analisar, tanto quanto o farão os brasilianistas.

Será necessário criar e estruturar no plano do Direito positivo o conceito legal de “legitimidade” do eleito, que é totalmente dissociado do conceito de “validez” do resultado das eleições. Enquanto na perspectiva da validez, examina-se o procedimento eleitoral em si, na legitimidade o que se analisa é a pessoa em si do eleito, sem qualquer relação com o exercício do mandato, que, como dito, sequer começou.

Mercê de seu profundo senso de observação,  MARX percebeu  que o Direito vem sempre a reboque da sociedade, de maneira que há um espaço de tempo que produz importantes efeitos sociais, antes que jurídicos. O fenômeno que ora sucede no Brasil vem lhe dar razão, porque o Direito positivo será obrigado a tratar, dentro do vasto campo do Direito Constitucional, de um tema que vai ainda mais alargar esse campo, trazendo para o Direito uma análise cuja raiz é compósita, na medida em que tem origem na sociedade, passando para a política e chegando a seus aspectos mais significativos no campo do Direito, porque lhe caberá dar a palavra final nesse tema. (Observe-se que se fala aqui no Direito Constitucional, e não no Direito Eleitoral, porquanto este ramo do Direito  termina a sua atuação quando são proclamados os resultados do pleito, validando-os, e o fenômeno em questão diz respeito não ao resultado das eleições, mas à legitimidade de quem vai exercer o mandato.)

E quando se fala na questão da legitimidade, é necessário considerar que estamos aí no terreno da liberdade de expressão, não se podendo olvidar do que adverte o filósofo francês, CORNELIUS CASTORIADIS em seu livro “Le Délabrement” (“A Destruição”):

(…) uma sociedade autônoma, uma sociedade verdadeiramente democrática, é uma sociedade que questiona tudo o que é predeterminado e assim libera a criação de novos significados. Em tal sociedade, todos os indivíduos são livres para escolher criar para suas vidas os significados que quiserem (e puderem)”. 

Talvez que o Direito deva começar sua análise desse fenômeno por considerar possível estarmos a vivenciar uma nova formulação da teoria do contrato social, que também surge em nossa sociedade pós-moderna com novos significados. É um bom ponto de partida.

E.T: não se está aqui, neste breve ensaio, senão que a considerar abstratamente o referido fenômeno, tal como o fazem os brasilianistas com seus objetos de estudo, sem emitir qualquer juízo de valor.

 

 

 

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