Poucos países do mundo, sobretudo se considerarmos os países ricos, possuem uma legislação constitucional que garante o direito fundamental à saúde nos moldes em que a nossa Constituição de 1988 o faz. O artigo 196, ao prever que “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”, criou um direito fundamental, erigindo-o a uma importante  posição jurídica subjetiva, para obrigar o Poder Público a implementá-lo  tanto quanto for possível, com o que busca a nossa Constituição fazer diminuir a desigualdade social, o que passa por propiciar um tratamento médico-hospitalar adequado a quem não o pode custear.

Antes da pandemia, tínhamos uma intensa judicialização de  temas que envolvem o direito fundamental à saúde. Pessoas que não obtinham do Poder Público o remédio de que necessitavam, e que não o podiam custear, vinham a juízo buscar uma tutela jurisdicional que obrigasse o Estado a lhes fornecer o remédio prescrito. Assim também faziam as pessoas que não conseguiam marcar procedimento cirúrgicos em hospitais públicos. Segundo dados coletados pelo Conselho Nacional de Justiça, entre 2008 e 2017, aumentou em 130% o número de processos judiciais envolvendo o direito fundamental à saúde, e o gasto público com essas demandas chegou, em 2016, a R$1.6 bilhão.

Diante do grande número de demandas, o Poder Judiciário tentou estabelecer alguns critérios que deveriam ser observados pelos juízes na análise da matéria. Mas prevaleceu o bom senso de respeitar o direito de livre convicção do juiz, não o amarrando em face de súmulas vinculantes e teses de aplicação automática, nomeadamente em uma matéria que diz respeito à interpretação e aplicação de um direito fundamental.

Esse era o quadro até a chegada do “Covid-19”.

Agora, em um mundo com a pandemia, o direito fundamental à saúde passará no Brasil por sua grande prova, porque o sistema público de saúde será colocado diante um problema com dimensões inimagináveis. Basta, pois, que consideremos o número de contaminados  no Brasil pelo “Covid-19”, que é já superior a três milhões de pessoas. Assim, se em março deste ano, quando os casos começaram a ser diagnosticados, muitas pessoas, buscando o sistema púbico de saúde, não conseguiam obter um adequado tratamento, e muitas dessas pessoas morreram em razão disso, o que sucederá a partir de agora e até o final do ano, quando os especialistas projetam a possibilidade de algo semelhante a uma progressão geométrica de novos casos?

Portanto, se tínhamos, antes da pandemia, um já sucateado sistema público de saúde, o que agora surgirá é um quadro de colapso total desse sistema, que deixará as pessoas sem qualquer assistência médico-hospitalar, o que de resto constitui a principal causa dos cem mil óbitos registrados em decorrência do novo vírus.

Em contrapartida, o que vemos, sobretudo em São Paulo, é um sistema privado de saúde que não sofreu nenhum grande problema decorrente da pandemia. Se compararmos a taxa de mortalidade entre os sistemas público e privado de saúde, chegaremos a uma diferença de aproximadamente 97%, o que significa dizer que as chances de alguém se recuperar da “Covid-19” em um hospital público, se tiver sido internado em uma unidade de terapia intensiva, essas chances são remotíssimas, ao contrário do que se dá com os pacientes do sistema particular de saúde.

É chegada a hora, pois, de analisarmos se é justo manter-se o regime de isenções aos hospitais particulares, que deixam de pagar, por exemplo, o ICMS sobre as operações de importação de equipamentos que são utilizados nesses hospitais. São vultosos os valores que não ingressam no orçamento público. Isenções que são dadas pelo Estado sem nenhuma condizente contrapartida, visto que é insignificante o percentual de casos tratados pelos hospitais públicos de pacientes que vêm do sistema público de saúde, a representar uma ficção, dentre as várias ficções que envolvem o nosso Estado de Direito.

Os nossos governantes apostavam que, quando muito, chegaríamos  a cinquenta mil casos de “Covid-19”, e que o sistema público poderia lidar com esse número. Não imaginavam esses governantes que rapidamente chegaríamos a cem mil mortes e a três milhões de contaminados, com a tendência de que em poucos dias dobremos esses números.

A realidade como sempre se impõe, e ela nos obriga a uma reavaliação do nosso sistema de saúde, para o tornar aquilo que o artigo 196 da CF/1988 objetiva: termos um sistema de saúde eficiente, que propicie aos efetivamente necessitados o melhor tratamento médico-hospitalar possível, e que não seja a desigualdade econômica a causa direta de  mortalidade pelo “Covid-19”.

 

 

 

 

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