Que se possa, em tese, terceirizar, ou seja, delegar à iniciativa privada funções que, a princípio e mesmo por natureza jurídico-social, são da atribuição exclusiva do Estado, como a educação, não há dúvida. Mas para que isso possa ocorrer é necessário que a Constituição o permita, ou não o vede expressamente. Portanto, o modelo de Estado que uma Constituição adota é de suma importância quando se trata de analisar esse fenômeno, cuja raiz é econômica, mas que deve receber do Direito uma análise que leve em conta aspectos que não são apenas constitucionais, mas também sociais e políticos, como ocorre com a questão da educação pública.
Importante observar que a nossa Constituição de 1988, ao tratar do tema da educação, demarcou o espaço que pode ser explorado diretamente pela iniciativa privada, não se tratando aí de delegação de uma função pública, senão que de uma função que pode ser exercida conjuntamente pelo Estado e particulares, dentro, contudo, de certos limites. O artigo 209 da Constituição de 1988 demarca esse espaço, como também o faz, por óbvio, em relação ao espaço em que a educação pública é de ser exercida exclusivamente pelo Estado, como se vê de seu artigo 208, não cabendo aí delegação, sobretudo no que concerne a atividades imanentes à educação, em que devem atuar aqueles princípios que a Constituição de 1988 estabelece por seu artigo 206.
Pois bem, o governo de um dos Estados-membros vem de apresentar à Assembleia Legislativa local um projeto de lei pelo qual atividades da educação pública devam ser terceirizadas, ou seja, delegadas à iniciativa privada. Importante observar que não se trata de projeto de lei que aumenta o espaço das escolas particulares, senão que o projeto quer modificar a natureza jurídica da educação pública, que passaria a ser objeto de delegação à iniciativa privada. O projeto de lei transmuda, portanto, a natureza jurídica da educação pública, tornando-a objeto de delegação para a iniciativa privada.
Essa questão nos conduz necessariamente a analisar se é constitucional esse projeto de lei, em um exame que passa pelo modelo de Estado brasileiro que a Constituição de 1988 efetivamente adota, moldado e estruturado pelos princípios que estão expressos no artigo 1o., dos quais se deve destacar o princípio da proteção à dignidade humana, em função do qual se deve pensar como construir uma sociedade livre, justa e solidária. Tivéssemos outro modelo de Estado, um Estado de feição liberal, e sobretudo esse princípio não poderia compor o texto constitucional. Mas não temos um Estado de feição liberal e é por isso que estão previstos em nossa Constituição princípios como o da proteção à dignidade humana.
Quando pensamos em educação pública, devemos considerar que, segundo a percuciente observação do conhecido filósofo, LOUIS ALTHUSSER, a escola é um dos aparelhos ideológicos do Estado e dos mais importantes, de maneira que adotar um ou outro modelo de escola pública tem importância fundamental. Como destaca ALTHUSSER, é a escola que ensina a “bem falar”, a “redigir bem”, mas também a “mandar bem”, no sentido de que dela sairão os futuros governantes, e são eles que determinarão qual a ideologia dominante e como ela poderá ser reproduzida na sociedade. É o que explica que a Constituição de 1988, sabendo da importância da escola como aparelho ideológico, tenha determinado qual o papel da escola pública em nossa sociedade, vedando a que se delegue à iniciativa privada suas funções, que devem ser exercidas exclusivamente pelo Estado.
Destarte, se o Estado delega à iniciativa privada as funções que são típicas à escola pública, passando à iniciativa privada o controle da escola “pública” como aparelho ideológico do Estado, modifica-se em consequência a ideologia, e não será mais o Estado que estabelecerá essa ideologia. Conforme nos adverte ALTHUSSER: “nenhuma classe pode duravelmente deter o poder do Estado sem exercer simultaneamente a sua hegemonia sobre e nos Aparelhos Ideológicos do Estado”. A iniciativa privada sabe bem disso, e alguns governantes também.
Quanto ao argumento de que a escola pública atual não é eficiente, ele não pode justificar que se delegue à iniciativa privada uma função que é exclusivamente do Estado. Fosse a ineficiência o critério pelo qual se de poderia determinar a natureza jurídica de um serviço público, e no Brasil talvez nada mais deveria estar sob o controle do Estado, nem mesmo os poderes públicos. A questão não é, portanto, delegar uma atividade própria e exclusiva do Estado como é a escola pública porque é ineficiente, senão que fazer o necessário a que se possa alcançar o nível de qualidade, o que é sempre possível, bastando ver o que ocorreu com a pandemia e a qualidade atingida pelo Sistema Único de Saúde – SUS, acerca do qual, aliás, não se viu mais nenhum político pretendendo privatizá-lo.