Reconhecem os processualistas que o grau de abstração de sua ciência – a do processo civil – chegou a limites tão perigosos que o direito material era o que menos importava no processo civil. Se o autor tinha ou não razão, isso não era tão relevante quanto à  técnica  empregada no processo civil. Assim, quanto maior era o grau de abstração, maior era a certeza de que o processo civil enfim comprovava que era uma ciência, e era isso que realmente interessava aos processualistas, então desafiados por especialistas de outros ramos do Direito, que desde tempo imemoriais haviam conquistado o reconhecimento da cientificidade do que estudavam, caso em especial dos civilistas.

Essa malfadada fase da história do processo civil, a que os processualistas costumam de maneira algo eufemística denominar de “fase autonomista”, não foi ainda de todo superada, embora exista quem afirme, com segurança, que o processo civil já atingiu a sua maioridade, depois de ter estabelecidas as suas grandes premissas metodológicas, e que não há recuo possível, como pensa, por exemplo, DINAMARCO.

Mas se é verdade que o processo civil passou a compreender a sua real finalidade – a de servir como objeto de reconhecimento e concreção do direito material -, compreendendo-se assim que o processo civil é tão somente o instrumento pelo qual o Estado (o Estado-Juiz) torna o direito material uma realidade concreta (o que não quer dizer que se tenha feito justiça no caso em concreto), isso não significa que se possa dizer que a fase autonomista do processo civil tenha sido de todo superada. Há ainda um passo a dar, e esse passo é muito mais difícil do que o que foi exigido aos processualistas para que aceitassem a triste notícia de que o processo civil podia ser uma ciência, mas não era senão que um instrumento.

Mas qual é o passo que os processualistas brasileiros ainda precisam dar?

É incomum no processo civil brasileiro a compreensão do que significam em essência e na prática os princípios constitucionais, vistos como algo meramente simbólico, sem conteúdo nenhum, ou paradoxalmente com um conteúdo tão extenso que se os podem aplicar a tudo, o que além de gerar insegurança jurídica, faz gerar  nos juízes  o receio de que estão indo além de seus sapatos, atuando como se fossem legisladores.

Na raiz desse problema está, sem dúvida, uma incorreta compreensão do que são os princípios constitucionais (não raras vezes confundidos com regras), e como eles operam no caso em concreto. Os processualistas em especial os veem como exortações, conselhos, no sentido de que podem ou não ser seguidos – como também podem ser esquecidos.

É o que ocorre com o princípio constitucional da proporcionalidade. Conquanto o Legislador  tenha feito integrar o enunciado normativo do artigo 8o. do CPC/2015 com o princípio da proporcionalidade, ele está ali ao lado de outros princípios como os da legalidade, publicidade e eficiência, o que faz gerar aos juízes a  impressão de que todos esses princípios têm a mesma importância, ou que todos têm quase que o mesmo conteúdo, não se podendo diferenciá-los objetivamente, e assim tanto faz invocar o princípio da proporcionalidade, como em seu lugar aplicar o princípio da razoabilidade, ou ainda não aplicar nem um, nem outro, ou aplicar ambos como se fossem um só.

Raríssimos são os julgados no Brasil em que se faz expressa referência ao princípio da proporcionalidade, e quando isso ocorre o que se está a aplicar não é o princípio da proporcionalidade. Utilizemo-nos de um caso que se tem tornado frequente em nossos tribunais, que estão a discutir se a regra do CPC/2015 que prevê a impenhorabilidade dos salários deve ou não ser mitigada. O Superior Tribunal de Justiça, aliás, acaba de afetar essa matéria para a fazer transformada em uma tese, tão logo se tenha uma posição definitiva naquele tribunal. No julgado que deu origem à instauração do incidente no qual surgirá essa tese, constata-se aquilo que é comum nos demais tribunais, que é o de considerar a existência de um conflito entre a regra legal do CPC/2015 e o princípio da dignidade humana. Não há, contudo, nenhuma alusão ao princípio da proporcionalidade.

Mas é precisamente o princípio da proporcionalidade que deve ser utilizado como mecanismo de controle jurisdicional nessa matéria, como em muitas outras. Com efeito, em havendo uma colisão entre direitos subjetivos, ainda que algum deles decorrente de uma regra legal, e não de um princípio, é o princípio da proporcionalidade a única forma pela qual o Poder Judiciário pode decidir qual a posição jurídica que prevalecerá no caso em concreto. Note-se que não se diz “qual o direito”, mas sim a posição jurídica prevalecente, porque obviamente somente se pode afirmar que existe uma colisão de direitos, quando todos os direitos envolvidos nessa colisão existem.

E como se pode decidir acerca da posição jurídica que prevalecerá? Aplicando o princípio da proporcionalidade e com a utilização de suas formas de controle, em especial a ponderação. Ponderam-se, com efeito, as circunstâncias do caso em concreto, como, por exemplo, a renda que o executado recebe, o tipo de vida que leva, as viagens que realiza, o bairro onde reside, tudo a ser aferido e cotejado com a posição jurídica do credor que possui o direito a receber o crédito, podendo lançar requerer se lance mão da penhora se o crédito não é satisfeito.

O passo que o processualista deve dar é, portanto, o de tomar conhecimento do princípio da proporcionalidade, e quando isso ocorrer, ele também perceberá que existem outros princípios constitucionais, cujo conteúdo é extraído apenas pelo processo civil e pelo necessário labor dos juízes na busca da solução mais razoável a cada caso em concreto, quando há a necessidade de escolher em face de uma colisão de direitos.

 

1 COMENTÁRIO

  1. Caro Prof. Valentino. Bom dia! Simplesmente arrebatadora explicação e elucidação. Parabéns.
    Reproduzo adiante: “Na raiz desse problema está, sem dúvida, uma incorreta compreensão do que são os princípios constitucionais (não raras vezes confundidos com regras), e como eles operam no caso em concreto.”
    Teremos a oportunidade de um futuro artigo explorando a dualidade: princípios e regras constitucionais.
    Agradecemos

    Dr. Renato Borges

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