É comum no Brasil denominar-se, algo pejorativamente, de “ativismo judicial” a decisões emanadas do Poder Judiciário que de algum modo estejam a invadir uma competência que supostamente seria de exclusividade do Poder Legislativo. Frequentemente, quando uma decisão judicial parece invadir esse sagrado território, diz-se que o Poder Judiciário está a praticar um “ativismo judicial”.
Convém observar que é da essência e finalidade da atuação jurisdicional o ser ativo, seja para reconhecer um direito subjetivo que, conquanto existente, enfrenta alguma resistência, seja para declarar inexistir esse mesmo direito. Embora a jurisdição deva ser inerte, e deva ser provocada por aquele que a Lei confere esse direito (o direito de ação), a jurisdição deve ser, tanto quanto possível, ativa, conforme se deve concluir da intelecção do princípio do devido processo legal, em cujo conteúdo está a efetividade das tutelas jurisdicionais. Em um Estado de Direito, não há sentido razoável em se querer um Poder Judiciário inerte naquilo que lhe é a função principal, que é a de tornar letra viva o que a Constituição prevê. Portanto, muitos daqueles que atacam o que denominam de “ativismo judicial”, desejam, em verdade, que as normas constitucionais permaneçam mera ficção, e que o Poder Judiciário seja apenas “mecanismo de relojoaria, máquinas a cegas a quem se dá corda”, para ser apenas “bobos de calendário do Tempo”, utilizando-se aqui como mote um poema escrito por MARX em sua adolescência (cf. KARL MARX, Grandeza e Ilusão”, por Gareth Stedman Jones, p. 67, Companhia das Letras).
Mas quais são os justos limites de atuação do Poder Judiciário, quando se trata de interpretar e aplicar normas da Constituição de 1988?
É necessário observar que não há mais sentido em se considerar que um texto constitucional é tanto mais importante quanto maior for a sua tradição, o que significaria interpretá-lo segundo as circunstâncias da realidade vigente ao tempo em que a norma constitucional foi pensada e aprovada, uma ideia que tinha algum sentido quando as sociedades não eram tão complexas quanto são hoje, em que as coisas mudavam lentamente. Hoje, a força da norma constitucional está precisamente no poder de se adaptar à realidade cambiante. Assim, quanto mais fluído o enunciado normativo de uma constituição, mais eficaz tende a ser esse texto, o que torna o “ativismo judicial” cada vez mais relevante, porque se a realidade muda, e a norma constitucional deve ser necessariamente fluída, mais atuante pode e deve ser a atuação jurisdicional.
O que, contudo, não significa dizer e autorizar que o Poder Judiciário saia “legislando” a torto e a direito. Há, com efeito, limites que são impostos pelas próprias normas constitucionais, sobretudo aquelas que preveem os direitos fundamentais, porque são essas normas (as que preveem os direitos fundamentais) em face das quais não há um predomínio do político em face do jurídico, senão que deve haver uma constante e necessária busca entre um equilíbrio entre eles, em que a supremacia deve ser a da proteção ao interesse público.
Os limites de atuação do Poder Judiciário estão fixados pela própria Constituição, e é importante adscrever que esses limites são naturalmente mais extensos quando existe um Tribunal Constitucional, e menos extensos quando, em lugar de um Tribunal Constitucional, existe tribunal que acumula as funções de interpretar a Constituição e de funcionar como última instância recursal, como ocorre no Brasil como o Supremo Tribunal Federal. Quando há um Tribunal Constitucional (como na Alemanha, por exemplo), formado por membros dos três poderes, aceita-se melhor a ideia de que os limites de intepretação constitucional sejam mais amplos, ou por outras palavras, aceita-se um “ativismo judicial” mais frequente.
Para entender quais são os limites do Poder Judiciário em face dos direitos fundamentais, há uma indispensável obra, muito citada, mas pouco lida e compreendida. Refiro-me ao precioso livro de ROBERT ALEXY, “Teoría de los Derechos Fundamentales”, que tem uma autorizada tradução para o espanhol. Nessa obra, o leitor encontrará uma segura fonte para compreender que, em face de determinadas normas de direito fundamental, o Poder Judiciário, interpretando-as, fará na prática o papel do Legislador, enquanto em face de outras normas de direito fundamental, isso não pode ocorrer.
Consideremos, pois, a questão que está na ordem-do-dia, que é a questão do aborto. Não há, pois, no texto da Constituição de 1988 nenhuma norma prevendo expressamente acerca do aborto. A legislação infraconstitucional, mais precisamente o Código Penal, é que trata do aborto, qualificando-o como crime, o que quadra com a proteção à vida, assim estabelecida pela Constituição. Mas há também o direito fundamental à liberdade, que se poderia reconhecer à mulher para que ela, e apenas ela sem a ingerência do Estado, possa decidir se deverá ou não abortar, surgindo aí uma colisão entre esses dos direitos fundamentais: o de proteção à vida e o da liberdade, conflito para a solução do qual o Poder Judiciário deve se utilizar do princípio constitucional da proporcionalidade e, em especial, da sua forma de controle que radica na ponderação entre os interesses em conflito. Mas é de rigor observar que esse controle, no caso do aborto, somente pode ser realizado em face do caso em concreto, e não abstratamente, porque não há norma constitucional que tenha conferido ao Poder Judiciário o direito de legislar a respeito desse tema, ainda que a título de que estaria a colmatar uma omissão em que incidiu o Poder Legislativo. Não há, pois, norma constitucional que configure essa omissão.
Do que se deve concluir que o Poder Judiciário não pode, a pretexto de exercer um controle de constitucionalidade por omissão, legislar a respeito do aborto, matéria acerca da qual somente o Poder Legislativo pode cuidar, segundo seu poder de discricionariedade, inclusive quanto à definição do momento em que essa discussão possa ser instalada no campo legislativo.