Que há limites que particularizam as esferas disciplinar e jurisdicional, não há quem duvide. Mas quais são esses limites? Eles estão bem demarcados, ou são tênues? Quais os riscos envolvidos, quando se respeitam esses limites?
Considere-se, a título de um mero exemplo, que um juiz conceda uma tutela de urgência em um processo, e a parte obrigada a cumprir essa decisão acoime, além da decisão, a pessoa do julgador, afirmando-o parcial, para o representar perante o órgão disciplinar do Tribunal. A alegação: a de que o magistrado é parcial.
O CPC/2015 em boa hora ampliou as hipóteses em que se caracterizam o impedimento e a suspeição, colmatando indesejadas lacunas que o CPC/1973 deixara. O artigo 144 do CPC/2015 diz quais são as situações nas quais há impedimento ao juiz, enquanto artigo 145 as situações de suspeição, quando, por exemplo, o juiz estiver interessado no julgamento do processo, atuando em favor de qualquer delas. Temos, portanto, uma regulação processual bastante adequada para tratar dos casos de impedimento e suspeição do magistrado.
Suponha-se, pois, que a parte, afirmando que o juiz é parcial, possuindo algum inconfessado interesse no processo, represente-o ao Tribunal para que se lhe faça instaurar um procedimento administrativo, fundado na alegação de que o magistrado, sendo parcial, viola dever da Lei Orgânica da Magistratura, que é uma Lei de 1979 (Lei Complementar 35), cujo artigo 35 prevê de modo bastante genérico que o juiz deve “manter conduta irrepreensível na vida pública e particular”, em um enunciando tão indeterminado que pode abarcar tudo, até mesmo a alegação de parcialidade do magistrado.
Mas o que ocorrerá se toda parte que, inconformada com uma decisão judicial que lhe seja desfavorável, invocando esse dispositivo da Lei Orgânica, requerer se instaure contra o juiz um procedimento disciplinar, fundado na simples e genérica alegação de que o juiz não está a “manter conduta irrepreensível na vida pública”, visto que, embora parcial, está a conduzir o processo? Serão tantos e inúmeros os procedimentos disciplinares que serão instaurados, e se pode mesmo afirmar que atingirão todos os magistrados, inclusive aqueles que terão determinado a abertura de procedimento disciplinar, os quais poderão ser representados com base no mesmo fundamento legal genérico da Lei Orgânica.
Há e dever haver limites que demarquem, com objetividade e racionalidade, uma esfera e outra, separando-as por meio de requisitos específicos. O desafio aí colocado é fazer, com zelo e cuidado, uma justa interpretação de um enunciado tão indeterminado quanto é o do artigo 35, inciso VIII, da Lei Orgânica, uma interpretação que se harmonize com o princípio, fundado diretamente no Estado de Direito, que garante a todo magistrado a livre convicção sobre aquilo que lhe caiba julgar, não se tratando, pois, de uma prerrogativa do magistrado, senão que um predicado que está no núcleo do Estado de Direito e da Democracia. A
O sociólogo ZYGMUNT BAUMAN cunhou a expressão “sociedade líquida”, lobrigando um fenômeno que efetivamente se tornou corrente e que traduz o que vivemos hoje, em que tudo pode variar tanto e rapidamente, gerando tamanha insegurança que, como dizia o humorista norte-americano, W. C. FIELDS, “Este mundo está se tornando tão perigoso que um sujeito pode se dar por feliz se sair dele vivo”.