A Ciência do Processo Civil deve muito ao jurista e processualista uruguaio, falecido em 1956, EDUARDO JUAN COUTURE. Basta, pois, considerar que se deve a ele a revelação de quão íntimas são e devem ser relações íntimas que o processo civil mantém com a constituição. Mas outra genial contribuição, que ainda hoje, contudo, não foi bem assimilada, não sendo de menor importância a intenção de muitos processualistas de esconderem a realidade, está na carga filosófica e política que muitas vezes está na base da interpretação judicial.
Em 1947, COUTURE fora convidado a ministrar um curso de inverno na Escola Nacional de Jurisprudência do México e escolheu tratar da interpretação das normas do processo civil. As aulas ministradas naquele curso, compiladas e organizadas, viriam a se transformar em um pequeno livro, mas de grande importância para quem quer compreender o que é interpretar, e sobretudo como o juiz leva a cabo essa atividade. É exatamente nesse ponto em que se dá a revelação de COUTURE:
“Todo intérprete é um filósofo que faz filosofia apesar de si próprio. Por trás de cada teoria interpretativa, por trás de cada método, encontra-se escondida uma tendência filosófica.
Até mesmo se pode, atuando com sagacidade, seguir o rastro de cada tendência para colocar em destaque a atitude filosófica a que corresponde.
E essa afirmativa será, ainda, corroborada por outro assistente que acrescentará o vocábulo política ao vocábulo filosófica.
Este último ponto não havia sido claramente percebido, até que certos doutrinadores dos últimos tempos, não satisfeitos com servir-se da lei, necessitaram servir-se da sua intepretação para fins políticos. Não somente a lei foi, então, um instrumento político em si mesma: o seu próprio manejo também o foi”. (“Interpretação das Leis Processuais”, p. 9, tradução por Gilda Maciel Corrêa Meyer Russomano, 4a. edição, editora Forense).
(Importante esclarecer que COUTURE estava a ministrar uma aula e achou proveitoso servir-se de uma ficção como ferramenta para que o público pudesse compreender melhor suas ideias, referindo-se, pois, a um professor como se estivesse ele a falar sobre a interpretação, e seus alunos, ou assistentes, formulassem questões, que iam então sendo analisadas e respondidas pelo mestre.)
Acabou assim a ingenuidade que até ali conduziam os operadores do Direito e o público em geral a acreditar que o juiz fazia apenas interpretar o texto da lei, e para tanto aplicava os métodos que SAVIGNY sistematizara (gramatical, lógico, sistemático …), e que a interpretação não era outra coisa senão que a vontade da lei que surgia da interpretação feita pelo juiz. COUTURE revelava que, por trás da interpretação do juiz, estava uma visão de mundo, uma filosofia de vida, e não raramente, mas de forma ainda mais velada, um objetivo político. Acabava assim a ingenuidade.
Andando o tempo, lobrigava-se que os processualistas cuidariam desenvolver a revelação de COUTURE, e não lhes faltariam fartos exemplos em que a atividade do juiz confundia-se com a do político, porque por trás da intepretação judicial estava um fim político não confessado pelo juiz. Infelizmente isso não aconteceu.
Se formos ao nosso CPC/2015 por exemplo, constataremos o ingente esforço que o Legislador faz para parecer que o juiz é a “boca da lei”, e o que ele interpreta é apenas a lei, sem qualquer motivação política ou filosófica. Basta ler o artigo 489 do CPC/2015, sobretudo seu parágrafo 3o, que determina se deva considerar prevalecente a presunção da boa-fé em favor do juiz, o que significa dizer que a Lei faz presumir que o juiz apenas interpretou a lei, e nada mais que isso.
Mas o que constatamos na vida real (que era a vida em que COUTURE pensava quando falava da interpretação) é que se tem tornado algo frequente, no mundo inteiro, uma interpretação judicial que não se limita a extrair da norma legal seu conteúdo e alcance por aplicação dos métodos tradicionais, senão que sobre-excede em muito esse limite, ao trazer uma acentuada carga de motivação política, que, por ser evidente, acaba por ser mostrar demais.
Dizia PONTES DE MIRANDA que as leis processuais traem o que vai na alma do Legislador. Isto está na introdução a seus indispensáveis comentários ao CPC/1973. Depois de lermos COUTURE em sua “Intepretação das Leis Processuais Civis”, podemos acrescer à percuciente observação de PONTES MIRANDA, para dizer que a interpretação que o juiz faz da lei muitas vezes trai o que lhe vai na alma.