Os códigos de processo trazem, em geral, normas que vedam ao juiz possa decidir casos em relação aos quais tenha algum tipo de vínculo, caracterizando o que a lei denomina de situações de suspeição e impedimento. Naturalmente, que um juiz não pode julgar uma causa sobre a qual ele tenha interesse de alguma espécie, como, por exemplo, uma ação promovida por um parente. O juiz deve ser neutro, é o que exigem os códigos de processo. Mas será que um juiz pode ser realmente neutro? Antes de responder a essa pergunta, teremos que analisar uma situação logicamente antecedente: O que é ser neutro?

Ser neutro é não possuir nenhum tipo de ideologia, poderíamos responder de bate-pronto. Mas então teríamos que reconhecer que os institutos processuais da suspeição e do impedimento, tal como considerados pela legislação processual, devem ser algo diverso do que significa ter uma ideologia. Então, um juiz neutro significaria um juiz que não tem uma ideologia?

Temos que compreender desde logo que um juiz não é um indivíduo abstrato, mas é um sujeito concreto, e é um sujeito concreto exatamente porque a ideologia o transformou em tal, como observa LOUIS ALTHUSSER: “(…) a categoria de sujeito é constitutiva de toda a ideologia, mas ao mesmo tempo e imediatamente acrescentamos que a categoria de sujeito só é constitutiva de toda a ideologia, na medida em que toda a ideologia tem por função (que a define) ‘constituir’ os indivíduos concretos em sujeitos. É neste jogo de dupla constituição que consiste o funcionamento de toda a ideologia, pois que a ideologia não é mais que o seu próprio funcionamento nas formas materiais da existência deste funcionamento” (“Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado”).

Assim, quando o juiz está a escrever a sua decisão não está, nem pode estar fora da ideologia, conquanto pense e afirme estar neutro, porque, como observa ALTHUSSER, aqueles que estão na ideologia se julgam por definição fora dela, porque “um dos efeitos da ideologia é a denegação prática do caráter ideológico da ideologia, pela ideologia: a ideologia nunca diz ‘sou ideológica”. O que explica a importância que os juízes em geral têm com o demonstrarem uma neutralidade, como se  pudessem estar, enquanto juízes e sujeitos concretos, fora da ideologia. Seria como conceber uma escola que não possuísse qualquer ideologia. Não há, com efeito, aparelho mais ideológico que uma escola.

Portanto, nenhum juiz é neutro, porque ele, como sujeito concreto, está sempre a operar dentro de uma determinada ideologia.

É importante atentar para o seguinte: antes de o juiz tornar-se juiz, a instituição (o Poder Judiciário) a que ele, como juiz, pertencerá, já espera que ele terá uma configuração ideológica, de preferência aquela que coincida com a ideologia prevalecente na instituição. Um juiz é um indivíduo abstrato relativamente ao sujeito concreto que ele sempre-já foi, no sentido do que a instituição esperava que ele viesse a ser. FREUD, observa ALTHUSSER, mostrou que os indivíduos são sempre abstratos relativamente aos sujeitos “que eles são sempre-já”, exemplificando com uma criança cuja chegada é aguardada em uma família: “Antes de nascer, a criança é portanto sempre-já sujeito, designado a sê-lo na e pela configuração ideológica familiar específica em que é ‘esperada’ depois de ter sido concebida”. 

Quando o juiz se torna um sujeito concreto – um juiz -,  já existe um direito positivo cuja ideologia é a mesma ideologia adotada pelo Poder Judiciário a que esse o juiz passa a pertencer como membro, e há diversos tipos de mecanismos que exercem  uma forte pressão para que o juiz submeta-se a essa mesma ideologia. Como ser neutro, se o juiz está, desde antes de ser juiz, preso, como sujeito concreto que é,  a essa ideologia dominante?

Daí a acentuada importância dos princípios jurídicos que, como mandamentos de otimização e fluídos por natureza, concedem ao juiz a possibilidade de, em certa medida, escapando à estrutura ideológica que lhe é imposta, fazer com que a sua ideologia (e não a da instituição) possa prevalecer em um caso em concreto. Norma como a do artigo 5o. da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, ao prever que “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”, cumpre o mesmo papel,  permitindo que o juiz, com a sua atividade solitária, exercida em casos em concreto, torne a sociedade cada vez mais plural, e que considere normal conviver com vários tipos de ideologia.

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