Tivemos a fortuna de contar em território brasileiro com a estada  de um dos maiores constitucionalistas europeus. Refiro-me a MARCELO CAETANO,  juspublicista europeu, cujas obras de doutrina de direito constitucional e administrativo eram à altura (na década de setenta) as mais prestigiadas na Europa ocidental e que devem ainda hoje ser obrigatoriamente consultadas, quando temos diante de nós alguma importante questão constitucional. Devemos começar pela leitura de seus escritos, é o que quero dizer, para que não sejamos a levado a erros tão palmares quanto são muitas das obras de alguns de nossos pretensos constitucionalistas.

MARCELO CAETANO (falecido em 1980) possui, dentre seus grandes livros, aquele que dedicou à teoria do Direito Constitucional, com edição brasileira em 1977 pela Forense (Rio de Janeiro), e tem o prefácio escrito pelo então ministro de nosso STF, ALIOMAR BALEEIRO. A obra tem o título “Direito Constitucional”, em dois volumes nos quais o emérito juspublicista, com mão de mestre, analisa o direito comparado, a teoria geral do Estado e da Constituição, passando em minuciosa análise as Constituições do Brasil até 1977, dedicando todo o segundo volume ao estudo de nosso direito constitucional.

CAETANO, analisando a limitação jurídica do poder político, destaca as relações que necessariamente existem entre o poder político e o Direito, ao escrever: “Das doutrinas que acabamos de expor resulta claramente que há uma questão prévia a resolver para nos podermos aproximar da solução do problema da limitação jurídica do Poder político: é a questão de saber quais as relações entre o Poder Político e o Direito. O Poder Político existe independentemente do Direito? É ele o criador do Direito? Ou será mero instrumento do Direito?

Analisando essas relações e como elas se desenvolvem de modo geral (e sem olvidar, por óbvio,  das peculiaridades de cada país que podem causar influxo nessas relações), CAETANO pontifica a respeito das limitações que o Direito impõe ao poder político, como se dá, em especial, pelo Direito Natural, e quais são aquelas que decorrem do Direito Positivo com as suas normas, nomeadamente as de direitos fundamentais em que o núcleo de proteção radica na proteção à liberdade, para ao fim concluir que há espaços de poder que são da atribuição exclusiva do Poder Público, que dispõe do poder discricionário para decidir a respeito de temas que, segundo as disposições da constituição, são de competência exclusiva do presidente da república, como se dá, por exemplo, com a figura do indulto, que é da tradição do direito constitucional brasileiro, previsto no artigo 81, inciso XXII, da Constituição de 1967, e que, seguindo essa tradição, está previsto na Constituição de 1988 em seu artigo 84, inciso XII.

Há, portanto, espaços de poder acerca dos quais o presidente da república dispõe do poder discricionário para decidir se é ou não conveniente a prática de um determinado ato (como também o de deixar de o praticar), como também conta com o poder de decidir o conteúdo da medida. Estamos, portanto, no terreno do poder discricionário conferido ao presidente da república, poder que é definido pelas relações entre o Poder Político e o Direito, no contexto do que surge a legalidade fixada pelo Direito Positivo de cada país, cabendo enfatizar que o conceito de legalidade não é um conceito estático, mas antes essencialmente dinâmico, dado que seu conteúdo e valor variam sob a influência de particularidades inerentes ao modo de ser dos ordenamentos jurídicos, como observa outro insigne juspublicista português, JOSÉ MANUEL SÉRVULO CORREIA, utilizando-se da lição da constitucionalista italiana, LORENZA CARLASSARE.

A propósito, SÉRVULO CORREIA, cuida observar que “a discricionariedade administrativa constitui um campo onde as fronteiras da legalidade se revestem de particular sofisticação e no qual a jurisprudência e a doutrina têm procurado circunscrever cada vez mais a parte do conteúdo de cada decisão administrativa que não obedeça a ditames da legalidade substancial”. (“Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos”.

Quando falamos em indulto presidencial, em que está presente, em toda a sua inteireza, o princípio da discricionariedade, devemos observar que, seguindo uma corrente que vem sobretudo da jurisprudência francesa,  hoje não se pode mais falar em “imunidade jurisdicional de certos atos administrativos (naqueles em que o poder discricionário lhes é imanente), mas devemos falar em imunidade jurisdicional de certos elementos do ato administrativo, como afirma SÉRVULO CORREIA, que, nesse contexto, salienta que a contraposição correta não é mais entre legalidade e oportunidade, mas sim entre legalidade e discricionariedade, porque em certos casos a oportunidade é matéria de legalidade.

Destarte, será nesse terreno (na contraposição entre legalidade e discricionariedade) que se deverá analisar se o conteúdo de um indulto presidencial está ou não de acordo com a legalidade constitucional.

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