Formou-se em nossa jurisprudência, sobretudo naquela emanada do STJ, o entendimento de que o CPC/2015 trouxera uma importante modificação na ação de exigir contas, ao transmudar a natureza jurídica do ato decisório que encerra a primeira fase desse tipo de ação, por entender que se trata, não mais de uma sentença, mas de uma “decisão parcial de mérito”.
De fato, há uma corrente jurisprudencial, instalada sobretudo no egrégio Superior Tribunal de Justiça, que defende o entendimento de que se há qualificar como decisão parcial de mérito a decisão que, na ação de prestação de contas, julga encerrada a primeira fase, de modo que, em se tratando de uma decisão interlocutória, o recurso cabível seria o agravo de instrumento. Nesse sentido: “(…) A questão discutida no presente recurso já foi apreciada pela Terceira Turma desta Corte Superior, tendo sido definido que o recurso cabível na ação de prestação de contas deve observar o conteúdo da decisão recorrida. Assim, tratando-se de decisão que julga procedente a primeira fase da prestação de contas, estar-se-á diante de provimento jurisdicional que decide parcialmente o mérito da demanda (decisão interlocutória), atacável, portanto, pela via do agravo de instrumento. (…)”. (STJ, AgInt-REsp 1.969.223,, Terceira Turma, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJE 24/03/2022)”.
Mas é importante observar que não se trata de uma corrente jurisprudencial que tenha alcançado, não ao menos por ora, uma força tão irresistível que tenha conseguido convencer a todos doutrinadores e operadores do direito, pois que uma significativa parte deles continua a entender que o CPC/2015 não trouxe nenhuma modificação no tipo de recurso que se deve interpor na ação de prestação de contas, que continua a ser, na tradição de nosso direito positivo, encerrada em sua primeira fase por uma sentença, e contra a qual se deve interpor recurso de apelação, posição que nós aqui defendemos.
Compreende-se que a utilização pelo legislador no CPC/2015 do termo “decisão” no parágrafo 5º. do artigo 550 tenha impressionado parte da jurisprudência, conduzindo-a a entender que o legislador quis aí referir-se à decisão interlocutória e não à sentença, conclusão que seria reforçada pelo fato de o Código de Processo Civil de 1973, em seu artigo 915, parágrafo 2º., referir-se expressamente em “sentença” como o ato decisório que encerrava a primeira fase da ação de prestação de contas no regime recursal daquele código, diversamente do que sucede no CPC/2015, que fala em “decisão”, e não em sentença.
Mas há que observar que, no CPC/2015, é comum o emprego genérico do termo “decisão”, abarcando tanto a decisão interlocutória, quanto a sentença, como se pode constatar pelos artigos 6º., 9º., 27, III, 55, parágrafo 1º, 85, parágrafos 16 e 18, entre outros. Destarte, o emprego do termo “decisão” no enunciado do parágrafo 5º. do artigo 550 do CPC/2015 não deve conduzir à necessária conclusão de que o legislador terá querido se referir à decisão interlocutória, porque de modo geral o legislador no CPC/2015, quando se refere à “decisão”, quer se referir tanto à decisão interlocutória, quanto à sentença, sem qualquer distinção à partida.
Outro argumento de que se utiliza quem defende que o recurso de agravo de instrumento é o adequado radica no parágrafo 4º. do artigo 550 do CPC/2015, que, ao se referir ao artigo 355 desse mesmo Código, ou seja, ao julgamento antecipado da lide, estaria a fazer uma relação com o artigo 356, inciso II, do CPC/2015, que se refere ao novel instituto do “julgamento antecipado parcial do mérito”. Mas também aqui não há razão que alicerce esse entendimento “concessa venia”, porque se deve considerar que o instituto do julgamento antecipado parcial do mérito somente pode ocorrer quando há cumulação de pedidos, o que não existe na ação de prestação de contas (ou como o CPC/2015 a denomina “ação de exigir contas”), em que há um só pedido – o de que as contas sejam apresentadas, como resulta evidente do conteúdo do parágrafo 5º. do artigo 550. Assim, o prosseguir-se com uma segunda fase não significa dizer que exista um novo pedido, que tenha sido cumulado na ação de exigir contas, senão que se trata de buscar a implementação prática da sentença que tenha declarado existir em favor da parte autora o direito a exigir contas, e que estas devam ser efetivamente prestadas, em uma fase semelhante à de cumprimento da tutela jurisdicional. Importante observar, outrossim, que o artigo 550, parágrafo 4º., remete apenas ao artigo 355, e não ao artigo 356.
Considere-se, outrossim, que no julgamento antecipado parcial do mérito, conforme prevê o artigo 356, parágrafos 2º e 3º., a parte poderá liquidar ou executar, desde logo, a obrigação reconhecida na decisão que julgar parcialmente o mérito, independentemente de caução, ainda que haja recurso contra essa interposto, e nessa hipótese, se houver trânsito em julgado da decisão, a execução será definitiva quanto ao pedido já julgado. Pois bem, se considerarmos o ato decisório do juiz que encerra a primeira fase da ação de exigir contas como um julgamento parcial de mérito, e se permitirmos, em função dos mencionados dispositivos, que a execução desde logo ocorra, que pedido remanesceria para uma outra decisão na ação de exigir contas? As contas já estariam a ser prestadas e não haveria mais o que julgar em termos de pedido cumulado, o que bem demonstra que, na ação de exigir contas, não há cumulação de pedidos, senão que um só pedido, o que é suficiente para demonstrar que não se pode aplicar o instituto do julgamento antecipado parcial de mérito, como também o comprova o parágrafo 2º. do mesmo artigo 550, ao prever que, prestadas as contas, prossegue-se a análise do único pedido que é formulado nesse tipo de ação.
Por tais razões, entendo que não houve nenhuma modificação trazida com o CPC/2015 quanto à natureza jurídica do ato decisório que julga encerrada a primeira fase da ação de exigir contas, que continua a ser, tanto quanto o era no CPC/1973, uma sentença, contra a qual cabe, portanto, recurso de apelação.