Com a pandemia, tornou-se prática comum nos tribunais brasileiros o que essa mesma prática denomina de “despachos virtuais”, que são as audiências que juízes, desembargadores e ministros concedem aos advogados, quando estes as solicitam para tratar de um algum caso sob julgamento. Há um sentimento comum entre os operadores do Direito que, ainda que a pandemia venha a se tornar uma endemia, com um controle sanitário que permitirá a volta à normalidade, os “despachos virtuais” vieram para se tornar uma prática comum.

Analisemos, pois, se há ou não diferença em termos de linguagem e de sua eficácia entre o que ocorria antes da pandemia, quando os despachos eram presenciais, quando o advogado comparecia ao fórum ou ao tribunal e ali, de corpo presente, fazia a sua argumentação, e o que sucede quando o despacho é “virtual”.  Friso que o aspecto de interesse aqui é apenas a questão da linguagem e de sua eficácia.

Utilizarei aqui de um pequeno ensaio que o filósofo e semiólogo francês, ROLAND BARTHES, escreveu acerca da “fala à escrita”, em que analisou a diferença que existe em as palavras que falamos e aquelas que escrevemos. Essas diferenças nos serão úteis para o nosso objetivo, mesmo que BARTHES estivesse a pensar na distinção entre a fala e a escrita, e nós aqui não falaremos senão que da “fala presencial” e da “fala virtual”.

Diz BARTHES: “Nós falamos, gravam o que dizemos, secretárias diligentes escutam nossas falas, expurgam-nas, transcrevem-nas, pontuam-nas, tiram delas um primeiro script que nos é submetido para que o limpemos de novo antes de entregá-lo à publicação, ao livro, à eternidade. Não é a ‘toalete do defunto” que acabamos de acompanhar? Embalsamos nossa palavra, como uma múmia, para fazê-la eterna. (…)”.

E acrescenta: “(…) a fala é sempre tática; mas passando para o escrito, é a própria inocência dessa tática, perceptível para quem sabe escutar, como outros sabem ler, que apagamos; a inocência está sempre exposta; ao reescrever o que dissemos, nós nos protegemos, nos vigiamos, censuramos, barramos as nossas bobagens, nossas suficiências (ou nossas insuficiências), nossas flutuações, nossas provas de ignorância, nossas complacências, por vezes até as nossas panes (por que, quando falamos, não teríamos o direito, sobre este ou aquele ponto lançado por nosso parceiro, de ficar seco?), em suma, todo o furta-cor de nosso imaginário, o jogo pessoal de nosso eu; a fala é perigosa porque é imediata e não volta atrás (a menos que se suplemente com uma retomada explícita) (…)”.

Mas será exatamente assim que sucede quando a palavra falada em uma audiência presencial é substituída pela palavra falada por meio virtual? As características que distinguem a fala da escrita, brilhantemente identificadas por BARTHES, permanecem quando se trata de distinguir o “despacho presencial” do “despacho virtual”, no caso dos processos judiciais?

Um primeiro aspecto é de relevo observar, e a ele os neurolinguistas chamaram a atenção, tão logo as “lives” começaram a ocorrer durante a pandemia. No ambiente virtual, especialmente quando há mais de duas pessoas participando da conversação, os olhos buscam uma referência no gestual do outro, tanto daquele outro que fala, quanto daquele que ouve (ou finge ouvir). Essa referência gestual, dizem os especialistas, é sensivelmente perdida no ambiente virtual. Nós procuramos os gestos do outro, mas não encontramos, diferentemente do que se dá quando estamos presencialmente a conversar com outro, porque podemos identificar no gestual dele algumas referências que podem nos ser úteis. Os braços, o olhar, o mexer a cabeça, são sinais exteriores que podem muitas vezes não ser intencionais, mas que nos permitem compreender se estamos indo bem naquilo que argumentamos, ou se estamos a desagradar. No mundo virtual, não temos acesso a esses gestos e por isso nossa referência desaparece.

Além desse aspecto, quando estamos no ambiente virtual a palavra “falada” pode não ser rigorosamente uma fala de todo espontânea, porque é plenamente possível que o meu interlocutor esteja a ler um texto, utilizando-se, por exempllo, de um aparelho denominado de “teleprompter”. Eu leio o que está escrito nesse aparelho, e o que é fala, virou escrita. E isso pode acontecer tanto com o advogado, quanto com o juiz. Ambos podem transformar sua “fala” em escrita.

E se a fala se transforma em escrita, surge algo que BARTHES destacou: quando há escrita (e não fala), há uma argumentação, e quando há argumentação (como há na escrita), perdem-se os predicados que só existem na fala, que, como observa BARTHES, surge fresca, natural, espontânea e verídica, teatral “em todo um conjunto de códigos culturais e oratórios” – e jurídicos, acrescentamos nós.

A tecnologia veio para ficar porque nos traz imensas vantagens, e o Direito obviamente não pode criar resistência a isso. Assim, não se trata aqui de defender que as audiências virtuais e os despachos virtuais não sejam adotados, e que nós voltemos apenas ao mundo presencial.

Trata-se apenas de estabelecer as diferenças que envolvem a linguagem quando expressa por meio da fala presencial e virtual, e dessas diferenças os operadores do Direito devem estar conscientes.

 

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