O que de fato impede que uma democracia transforme-se em em uma autocracia? É o que nos conduz a pensar a entrevista concedida por SARAH KENDZIOR, jornalista,  antropóloga e acadêmica norte-americana ao jornal português, “Público”, edição de hoje.

Indagada se teria se exaurido em si a ideia de que as instituições, através de seus freios e contrapesos, podem superar qualquer crise política, SARAH KENDZIOR, respondeu, referindo-se particularmente ao sistema juspolítico dos Estados Unidos:

Não me parece que as pessoas ainda acreditem que somos imunes à autocracia, e é difícil acreditar no excepcionalismo americano depois do que aconteceu durante a pandemia. Aliás, espero que toda a gente tenha a consciência de que a autocracia é tão possível aqui como em qualquer outro lugar. O que me preocupa, agora, é que as pessoas queiram um regime autocrático, se acharem que fazem parte da classe que beneficiaria com isso. É uma ilusão, porque quase ninguém ganha numa autocracia, a não ser uma pequena percentagem no topo, que também acaba por cair de forma dramática, mais tarde ou mais cedo”. 

Destarte, impõe-se refletir sobre a real importância de uma constituição como guardiã de uma democracia em nossa sociedade complexa, em uma análise que não pode mais ficar circunscrita ao campo do Direito, como se a constituição devesse  ser considerada apenas em seu componente jurídico, dissociado da realidade da política e da economia.

Grupos de interesses econômicos, conjugados a interesses políticos,  possuem sim poder mais do que suficiente para defenderem a mantença de um regime democrático, desde que isso atenda a seus interesses. E como esses interesses são variados, pode suceder que esses grupos queiram manter a democracia, mas sob um novo formato ou com um novo líder, se os interesses econômicos assim o exigirem. Dispõem esses grupos de um arsenal de formas de manipulação, todas engendradas com o objetivo de escamotearem os verdadeiros interesses, de modo que a massa da população não identifique ou perceba quais são os verdadeiros interesses subjacentes.

Se antes o constitucionalismo jurídico apostava no poder absoluto de uma constituição como guardiã de um regime democrático, ao menos para aqueles juristas de perfil mais publicista (ou seja, juristas que não se contentam com o material jurídico, buscando construir seu pensamento e sua análise com os dados da Ciência Política, da Sociologia e da Filosofia geral), esses juristas, com efeito, têm hoje uma dimensão muito mais real do que representa o poder juspolítico de uma constituição. Compreendem-na como ela efetivamente é.

Pois bem, interessa aos grupos econômicos mais poderosos do mundo – os grupos econômicos que operam nos Estados Unidos – viverem sob uma autocracia, em cujo ambiente a liberdade econômica não seria nem de perto o que é hoje no direito positivo norte-americano? Está aí a explicação do fracasso da tentativa desencadeada em 2016 pelo governo TRUMP. Mas a Constituição não teve nenhum papel nesse contexto? Sim, claro teve, mas um papel muito mais simbólico do que infelizmente nós, os juristas, sempre supomos que uma constituição possa ter.

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