Quando se instalou a pandemia, muitos acreditavam que a maioria dos problemas jurídicos provocados por ela ficariam circunscritos ao campo das relações contratuais, e de fato não é pequeno o número de ações judiciais no Brasil em que se discutem impactos na relação contratual gerados pelas medidas restritivas estatais.

Mas o grande problema jurídico que a pandemia está a provocar não está no campo dos contratos, porque neles o bom senso e a negociação deram azo a que se evitasse a judicialização da maioria das controvérsias.

O grande problema está sim no campo do Direito Constitucional e isso nos obrigará a uma aplicação cada vez mais frequente do princípio constitucional da proporcionalidade, instituto que em tribunais constitucionais de países da Europa Ocidental é de aplicação corriqueira, o que não sucede no caso do Brasil. Como enfatizado em várias postagens neste “blog”, algumas delas de antes da pandemia, é ainda incipiente a utilização em processos judiciais no Brasil do princípio da proporcionalidade, não raro confundido com o princípio da razoabilidade. Importante observar que o grau de evolução de um Estado de Direito depende de como o princípio da proporcionalidade é aplicado pelo Poder Judiciário, porque é exatamente no campo do conflito entre a liberdade individual e o poder estatal que esse princípio tem inteira aplicação.

Tem surgido, com efeito, um leque cada vez mais aberto de medidas restritivas impostas a quem se recusa a vacinar-se. Uma enfermeira foi demitida; prefeituras impuseram o “passe vacinal” para acesso a locais públicos e privados fechados; alguns órgãos do Poder Judiciário impedem o trabalho presenciais de servidores que não estejam vacinados, impedindo também o acesso do público em geral a repartições públicas; um pai, que se recusou a vacinar-se,  foi obstado de visitar a sua filha. Assim é que, em menos de três meses, um elenco variado de medidas restritivas surgiu, e  esse elenco aumentará consideravelmente até o final deste ano.

Essa é, portanto, a grande temática jurídica que a pandemia nos trouxe e que envolve, desde sempre, a questão do conflito entre a liberdade individual e os demais direitos fundamentais e posições jurídico-estatais.  Querer recusar a vacina é um direito subjetivo legítimo, tanto quanto é o direito de o Estado impor medidas restritivas a quem não queira vacinar-se. O julgamento do STF no final do ano passado, em que se reconheceu a obrigatoriedade da vacina, deixou isso claro. Conquanto seja obrigatória, a vacina não pode ser “forçada”. O STF legitimou, pois, a aplicação de medidas restritivas contra aquele que não queira vacinar-se.

Mas há a urgente necessidade, reclamada pela segurança jurídica, de que se defina, no rol de medidas restritivas, quais aquelas que sejam proporcionais, acoimando aquelas que não o sejam. Enquanto não houver uma fixação desses limites, a fértil imaginação dos agentes do Estado fará o elenco de medidas restritivas tornar-se algo parecido como um código, tantas são as relações jurídicas que existem e que sofrem algum efeito decorrente da pandemia.

O princípio da proporcionalidade é, portanto, o único instrumento jurídico que permitirá definir que medidas restritivas legitimam-se ou não. E será também o princípio da proporcionalidade que ditará o que em termos de contrapartida competirá ao Estado implementar (tema de que tratamos em uma recente postagem). A título de exemplo, consideremos o caso do nosso ministro da Saúde que, conquanto vacinado, contraiu o vírus em uma viagem oficial a uma cidade americana, a qual exige o “passe vacinal” para a frequência, por exemplo, a restaurantes, medida, aliás, que tem sido adotada em algumas cidades brasileiras. Tendo contraído o vírus, o ministro, portando o “passe vacinal”, poderia ter ido a algum restaurante e contaminado outras frequentadores do local. Não teria o Estado, ao exigir o “cartão vacinal”, assumido a obrigação de reparar os danos suportados por quem, vacinado, tenha contraído o vírus em um local a cujo acesso era exigido o teste vacinal? O Estado, exigindo o “passe vacina”, teria assumido a obrigação de impor a realização do exame de detecção do vírus, e se não o fez não teria assumido a obrigação de indenizar aquele que tenha sido contaminado? Vale lembrar que a responsabilidade do Estado nesse tipo de situação é objetiva, se considerarmos a regra de nossa Constituição.

 

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