O filósofo inglês, ISAIAH BERLIN, é ainda hoje pouco conhecido no Brasil e a seus livros somente têm acesso pouquíssimos  especialistas. Raros são os juristas brasileiros que o conhecem, e raríssimos são aqueles que leram qualquer texto produzido por ele. Isso talvez explique a razão pela qual a liberdade seja tão maltratada em nosso país.

Ao escrever, em 1958, seu seminal ensaio “Dois Conceitos de Liberdade”, que viria a revolucionar o conceito jurídico de “liberdade”, BERLIN observa  logo no início de seu texto: “Se os homens nunca discordassem sobre os objetivos da vida, se nossos ancestrais tivessem permanecido imperturbados no Jardim do Éden, os estudos a que se dedica a Cadeira de Chichele de Teoria Política e Social não poderiam ter sido concebidos. Pois esses estudos nascem e prosperam na discórdia. Alguém pode questionar essa afirmação alegando que até numa sociedade de anarquistas religiosos, em que não há possibilidade de ocorrerem conflitos sobre os propósitos igualmente supremos, alguns problemas políticos, por exemplo, questões constitucionais ou legislativas, ainda poderiam acontecer. Quando há consenso sobre os fins, as únicas questões que restam se referem aos meios, e essas não são políticas, mas técnicas, isto é, passíveis de serem resolvidas por especialistas ou máquinas, como discussões entre engenheiros ou médicos. É por isso que aqueles imbuídos de uma fé em algum imenso fenômeno transformador do mundo, como o triunfo final da razão ou a revolução proletária, devem acreditar que todos os problemas políticos e morais podem ser com isso transformados em tecnológicos. Esse é o significado da famosa frase de Engels (parafraseando Saint-Simon) sobre ‘substituir o governo de pessoas pela administração de coisas’, e das profecias marxistas sobre o desaparecimento do Estado e o começo da verdadeira história da humanidade”. 

É nesse contexto que BERLIN desenvolve os conceitos de “liberdade negativa” e de “liberdade positiva”, os dois conceitos de liberdade que ele cria e desenvolve magistralmente e que impactaram não apenas a Filosofia, mas o Direito e a Ciência Política.

Para BERLIN, existe liberdade negativa quando ninguém pode interferir em minha atividade ou em minha escolha, de modo que se outros me impedem de fazer o que do contrário eu poderia fazer, ou se me me obrigam a fazer o que eu não quero fazer, posso dizer que não possuo liberdade. “A coerção implica a interferência deliberada de outros seres humanos na minha área de atuação”, observa BERLIN, acrescentando: “Quanto maior a área de não-interferência, mais ampla a minha liberdade”. 

Quanto à noção da liberdade positiva, ensina BERLIN que “O sentido ‘positivo’ da palavra ‘liberdade’ provém do desejo que o indivíduo nutre de ser seu próprio senhor. Desejo que minha vida e minhas decisões dependam de mim mesmo, e não de forças externas de qualquer tipo”. A liberdade positiva é, assim, a liberdade de escolher o que quero para a minha vida.

Esses conceitos de “liberdade negativa” (não sofrer a interferência de outro) e a de “liberdade positiva” (poder escolher o que quero), construídos por BERLIN, são fundamentais para que analisemos um tema atual e que afeta diretamente a questão da liberdade. Com efeito, um importante município brasileiro acaba de editar uma lei obrigando seus servidores a tomarem a vacina para a “Covid-19”, o que significa dizer que essa legislação está a afetar os dois conceitos de liberdade, tanto a liberdade negativa, quanto a positiva. A questão que se coloca nesse contexto é definir se essa legislação é constitucional ou não, dado o acentuado poder de interferência que o Público está a implantar sobre a esfera jurídica de seus empregados (os servidores públicos), impondo-lhes a obrigatoriedade de tomarem a vacina, invadindo com uma descomunal   força a esfera de liberdade desses servidores públicos, retirando-lhe a liberdade positiva na medida em que não lhes permite escolher entre quererem ou não quererem a vacina. Instala-se aí, pois, um conflito entre a liberdade do servidor público municipal e a posição jurídica da prefeitura.

Como observa BERLIN, e aqui constitui a principal ideia do referido ensaio, “não podemos permanecer totalmente livres e devemos abrir mão de alguma liberdade para própria para preservar o resto”. Significa isso dizer que, em havendo conflito entre a liberdade individual em face de outros direitos, é necessário ponderar as circunstâncias do caso em concreto, para que se possa definir, racionalmente, o que deve prevalecer: a liberdade ou o outro direito que com ela esteja a colidir. Chegamos, pois, ao princípio da proporcionalidade.

Caberá ao Poder Judiciário brasileiro, no mesmo adequado,  ponderar entre as razões do servidor público que, invocando a sua liberdade (negativa e positiva), não queira se vacinar, e as razões da prefeitura impondo-lhe a vacina. Ponderar significa considerar as razões, os motivos e as circunstâncias do conflito entre a liberdade e o outro direito. Quais são no caso da vacina?

Pode o servidor público alegar, por exemplo, que não confia em nenhuma vacina, ou não confia em alguma ou algumas delas. Pode também argumentar que como a vacina não é eficaz para todas as variantes da “Covid-9”, não lhe convém ser vacinado pelas vacinas atualmente existentes, exercendo a sua liberdade para querer aguardar por uma nova safra de vacinas, quiçá mais eficientes. Poderá aduzir, outrossim, que como as vacinas são diferentes entre si, não pode o Estado suprimir-lhe a escolha, como está a suceder. Pode ainda alegar que não são ainda conhecidos todos os efeitos colaterais das vacinas e que a saúde pode sofrer dano decorrente da vacina.

O Poder Público, por sua vez, poderá alegar que todas as vacinas são eficazes e como são eficazes, não pode o servidor público escolher, senão que se lhe pode obrigar a que se vacina, porque se trata da proteção à saúde pública. Pode também defender o poder de punir o servidor recalcitrante.

Certamente poderão surgir outras razões e motivos de lado a lado, porquanto a cada dia a ciência nos traz alguma informação  sobre a pandemia, seja em prol da eficácia absoluta das vacinas, seja para questionar essa eficácia em relação a todas as vacinas ou a algumas delas, e esse material científico integrará o conjunto das circunstâncias que serão objeto da ponderação.

De todo o modo e independentemente do resultado dessa ponderação, é importante assinalar que,  quando o Estado interfere em acentuado grau na liberdade individual, deve o Direito acautelar-se, porque há e sempre houve uma tendência natural do poder em fazer a liberdade individual sempre ceder passo, até o ponto de aniquilá-la. Destarte, quando se legitima a invasão estatal, há que ter grande cautela, porque uma invasão pode acabar por justificar a invasão em outras áreas da liberdade do indivíduo.

Uma das críticas que se faz ao marxismo é exatamente esse poder desmedido em favor do Estado sobre a liberdade individual. Podemos ver que correntes tão críticas ao marxismo, sobretudo as vindas de liberais e de neoliberais, muitas vezes defendem uma intromissão sobre a liberdade individual que nem mesmo os marxistas defenderiam.

* o nome de “Chichele” foi dado em homenagem ao inglês, HENRY CHICHELE, fundador da cadeira de “Teoria Social e Política”  na Universidade de Oxford. BERLIN foi titular dessa cadeira a partir de 1958, mesmo ano em que escreveu “Dois Conceitos de Liberdade”.

 

 

 

 

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