Declarada a inconstitucionalidade de uma norma legal, esse norma é nula e não pode produzir efeitos. Essa é a base da “Teoria Clássica da Inconstitucionalidade”, construída em seus primórdios a partir do que a doutrina do Direito Civil de há muito  fixara no terreno das nulidades e anulabilidades. Mas como é comum ocorrer, quando se transporta um instituto jurídico de um ramo a outro, como entre o Direito Civil e o Direito Constitucional, alguns aperfeiçoamentos são necessários.

É o que ocorreu com a teoria das nulidades e anulabilidades quando  aplicada no campo do Direito Constitucional. Uma  importante modificação operada sobre a conformação original da teoria nascida no Direito Civil determinou a necessidade de desdobrar o conteúdo do instituto da inconstitucionalidade, passando a doutrina constitucional mais recente a considerar a possibilidade de que a nulidade de uma norma não deva necessariamente estar associada à nulidade absoluta, como observa CANOTILHO:

À inequívoca inconstitucionalidade de uma norma podem não se associar, de modo automático, todos os efeitos da nulidade absoluta. É possível, por exemplo, fixar a inconstitucionalidade mas com efeitos prospectivos ou pro futuro e não com efeitos retroativos (como na nulidade absoluta). Nos tempos mais recentes a incompatibilidade tem evoluído no sentido de sentença de bloqueio da aplicação da lei inconstitucional. Isto significa que a declaração de incompatibilidade fundamenta a não aplicação a lei até à emanação de um novo ato legislativo”. (“Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 923).

Há que se observar, contudo, como sublinha CANOTILHO, que “Os tribunais não têm competência constitucional (e legal) para recortar livremente os efeitos do vício jurídico dos atos normativos inconstitucionais. O regime jurídico dos efeitos de inconstitucionalidade tem de ser, pois, um regime jurídico constitucionalmente fundado”. (obra mencionada, p. 919).

Esse é o aspecto que pretendo aqui abordar, chamando a atenção do leitor para o relevante fato de que a nossa Constituição de 1988 não prevê em seu texto a possibilidade de se modularem efeitos decorrentes da declaração de inconstitucionalidade de uma norma. Essa modulação é prevista apenas por uma lei ordinária, a de número 9.868/1999, cujo artigo 27 prevê: “Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”. 

Importante ressaltar, portanto, que o texto da nossa Constituição não prevê a modulação de efeitos, nem remete ou possibilita remeter o tema a um tratamento por uma lei infraconstitucional. E de resto nem o poderia fazer, dado que as normas gerais que regulam e devem regular o instituto da inconstitucionalidade devem estar necessariamente no texto da Constituição, e apenas nele, por não haver dúvida de que a modulação de efeitos integra o conteúdo sensível desse instituto, a justificar que a regulação da matéria seja reservada apenas à Constituição.

Além desse aspecto, também é de relevo considerar que conceitos jurídicos indeterminados como são os conceitos de “segurança jurídica” e “excepcional interesse social”, de que se utiliza o artigo 27 da referida lei ordinária, não estão nessa norma infraconstitucional sequer demarcados em seus elementos mais básicos, o que faz conceder ao STF uma margem de liberdade hermenêutica desproporcional, muito além de uma justa e razoável medida, nomeadamente se considerarmos que se trata de uma norma de lei infraconstitucional, cuja aprovação não exige o rigor que é imposto pela Constituição para a aprovação de uma norma constitucional.

O que é “segurança jurídica”? A Constituição de 1988 não diz. O que é “interesse social”? A Constituição utiliza esse termo, mas para situações específicas, como a que prevê uma modalidade de desapropriação, e ainda quando trata da publicidade dos atos governamentais. Fora dessas situações, a Constituição de 1988 não se utiliza desse termo. E o que falar então de “excepcional interesse social”? São conceitos indeterminados e que não podem ficar sem qualquer parâmetro, nomeadamente se considerarmos que estão empregados na norma infraconstitucional para regular um tema essencialmente constitucional.

Destarte, como os tribunais não têm competência constitucional para recortar livremente os efeitos do vício jurídico, ou seja, não têm competência constitucional para modular os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, a não ser na hipótese em que a Constituição tenha, ela própria, concedido essa competência, o que não sucede no caso do Brasil, daí decorre a evidente conclusão de que o STF não pode modular efeitos, sendo, portanto,  inconstitucional a norma do artigo 27 da lei ordinária 9.868, por invadir matéria que é de regulação exclusivamente constitucional, além de também violar o princípio da constitucionalidade na medida em que utiliza, sem rigor, conceitos jurídicos indeterminados.

 

 

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