1 – A Constituição de 1988, seguindo a nossa tradição, impõe o voto como obrigatório. Ao fazê-lo, traz junto uma importante consequência, que é a de tornar sobremaneira relevante a análise da legitimidade dos resultados do pleito eleitoral, legitimidade que é de ser aferida em função direta do número de votos válidos e das abstenções. Fosse facultativo o voto, essa análise não teria lugar.
Mas se o voto é obrigatório, há necessariamente que se cotejar o número de votos válidos e sua proporção com o número de abstenções, porque é exatamente nesse contexto fático-jurídico que se deve perscrutar acerca da legitimidade.
Com efeito, se o número de votos válidos é próximo ao do número de abstenções, exsurge uma dúvida se, de fato, o candidato eleito representa a vontade do universo dos eleitores, ou não.
O número de abstenções no Brasil vem aumento sensivelmente nas últimas eleições, mas o número registrado ontem chama a atenção e traz à análise dos operadores do Direito e também aos cientistas políticos a questão da legitimidade dos resultados, se considerada a perigosa aproximação dos números dos votos válidos ao do número das abstenções.
Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, o número de abstenções chegou a 32,79%, ou seja, mais de um milhão e meio dos eleitores não foram votar. Esse número é maior do que o número do total de votos recebidos por Eduardo Paes, o candidato que mais recebeu votos válidos.
2 – O nosso Código Eleitoral é de 1965 (Lei 4.737), ou seja, um código editado durante a ditadura militar, e seja por esse aspecto, seja sobretudo por se tratar de uma legislação editada em face de uma realidade muito distante e diferente da nossa, não tem em seus princípios e regras normas que possam auxiliar os juízes na interpretação dos fenômenos jurídico-eleitorais, embora seja de se ressalvar a norma do artigo 219 (“Na aplicação da lei eleitoral o juiz atenderá sempre aos fins e resultados a que ela se dirige, abstendo-se de pronunciar nulidades sem demonstração de prejuízo”), que, bem aplicada, pode produzir importantes resultados. De todo modo, esse código não prevê, nem trata da questão da legitimidade dos resultados em sua relação com o número de votos válidos e abstenção.
Esse código, com efeito, ao cuidar da nulidade das eleições (artigos 219-224), trata de hipóteses restritas, ligadas à forma do pleito, nada prevendo, pois, quanto à legitimidade dos resultados e da forma como eles devem ser interpretados em um regime democrático como o nosso.
É certo que a Constituição de 1988, em seu artigo 14, parágrafo 9o., determinou sobreviesse uma legislação complementar que, além de tratar de casos de inelegibilidade, deveria também cuidar da “normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função”, o que, contudo, não atende à necessidade de haver uma legislação, necessariamente de matriz constitucional, que bem explicite princípios e regras que possam ser aplicados quando em questão a legitimidade dos resultados em uma eleição, aferidos em função do número de votos válidos e das abstenções.
Importante enfatizar que, segundo o artigo 2o., parágrafo único, da Constituição de 1988, todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, o que nos obriga a considerar o aspecto da legitimidade dos eleitos. Mas sem uma norma constitucional expressa, a análise desse aspecto não pode ser levada a cabo, o que constitui, sem dúvida, um ponto bastante frágil de nossa democracia.