A imprensa noticia, com alarde, que o governo federal quer, ou ao menos cogita, impor tabelamento de preço a alguns produtos, como o arroz. A inflação, dizem os economistas, é, em essência, um fenômeno inflacionário, o que, contudo, não quer dizer que não existam efeitos outros que decorrem da inflação e que não sejam puramente inflacionários. Há, pois, efeitos jurídicos envolvidos no fenômeno da inflação. É acerca deles que falaremos aqui, para tratar da legalidade do tabelamento de preços no contexto da liberdade econômica.
Há um ano, mais precisamente em 20 de setembro de 2019, entrou em vigor a lei federal 13.847, denominada a “Lei da Liberdade Econômica”, a qual em seus dois primeiros artigos fixa seus princípios e objetivos. Pela importância, é necessário a reprodução exata desses dois nucleares dispositivos:
“Art. 1o. Fica instituída a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, que estabelece normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica e disposições sobre a atuação do Estado como agente normativo e regulador, nos termos do inciso IV do caput do art. 1º, do parágrafo único do art. 170 e do caput do art. 174 da Constituição Federal.
§ 1º O disposto nesta Lei será observado na aplicação e na interpretação do direito civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho nas relações jurídicas que se encontrem no seu âmbito de aplicação e na ordenação pública, inclusive sobre exercício das profissões, comércio, juntas comerciais, registros públicos, trânsito, transporte e proteção ao meio ambiente.
§ 2º Interpretam-se em favor da liberdade econômica, da boa-fé e do respeito aos contratos, aos investimentos e à propriedade todas as normas de ordenação pública sobre atividades econômicas privadas.
§ 3º O disposto nos arts. 1º, 2º, 3º e 4º desta Lei não se aplica ao direito tributário e ao direito financeiro, ressalvado o inciso X do caput do art. 3º.
§ 4º O disposto nos arts. 1º, 2º, 3º e 4º desta Lei constitui norma geral de direito econômico, conforme o disposto no inciso I do caput e nos §§ 1º, 2º, 3º e 4º do art. 24 da Constituição Federal, e será observado para todos os atos públicos de liberação da atividade econômica executados pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios, nos termos do § 2º deste artigo.
§ 5º O disposto no inciso IX do caput do art. 3º desta Lei não se aplica aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, exceto se:
I – o ato público de liberação da atividade econômica for derivado ou delegado por legislação ordinária federal; ou
II – o ente federativo ou o órgão responsável pelo ato decidir vincular-se ao disposto no inciso IX do caput do art. 3º desta Lei por meio de instrumento válido e próprio.
§ 6º Para fins do disposto nesta Lei, consideram-se atos públicos de liberação a licença, a autorização, a concessão, a inscrição, a permissão, o alvará, o cadastro, o credenciamento, o estudo, o plano, o registro e os demais atos exigidos, sob qualquer denominação, por órgão ou entidade da administração pública na aplicação de legislação, como condição para o exercício de atividade econômica, inclusive o início, a continuação e o fim para a instalação, a construção, a operação, a produção, o funcionamento, o uso, o exercício ou a realização, no âmbito público ou privado, de atividade, serviço, estabelecimento, profissão, instalação, operação, produto, equipamento, veículo, edificação e outros.
Art. 2º São princípios que norteiam o disposto nesta Lei:
I – a liberdade como uma garantia no exercício de atividades econômicas;
II – a boa-fé do particular perante o poder público;
III – a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas; e
IV – o reconhecimento da vulnerabilidade do particular perante o Estado.
Parágrafo único. Regulamento disporá sobre os critérios de aferição para afastamento do inciso IV do caput deste artigo, limitados a questões de má-fé, hipersuficiência ou reincidência”.
Pode-se perguntar, pois, se, diante de uma lei que garante a liberdade econômica como uma garantia no exercício de atividades dessa natureza, e que demarca a intervenção do Estado sobre a atividade econômica como algo subsidiário e excepcional, se, pois, diante de normas tão claras quanto estas, o governo federal pode impor o tabelamento de preços?
Obviamente que, a não ser em um cenário econômico-social que se caracterize por uma acentuada gravidade, e que exista um descontrole absoluto de preços que, a rigor, nem mesmo o mercado, ele próprio, possa regular, então em situações excepcionais como essa a lei permite que o governo se utilize da medida de tabelamento de preços, mas sempre observando que se deva considerar essa medida como excepcional, como sublinha a lei 13.874, seja quanto ao tempo de duração dessa medida, seja quanto ao universo dos produtos a serem tabelados.
Pois bem, como não vivemos em um cenário econômico-social com essa gravidade, conclui-se que não há o suporte fático-jurídico que, nos termos da lei 13.874, possa autorizar qualquer espécie de congelamento de preços.