Um dos pontos sensíveis que devem ser enfrentados pela reforma administrativa, cujo projeto foi encaminhado ao Congresso Nacional recentemente, diz respeito a uma regra constitucional que, embora clara como a água, tem sido transmudada em essência e finalidade, gerando graves distorções. Refiro-me ao inciso XIV do artigo 37, que tem, desde a emenda 19, que é de 1998, a seguinte redação:

“os acréscimos pecuniários percebidos por servidor público não serão computados nem acumulados para fins de concessão de acréscimos ulteriores”.

Em sua redação original, ou seja, naquela redação surgida com a Constituição em 1988, esse inciso tinha a seguinte redação:

“os acréscimos pecuniários percebidos por servidor público não serão computados nem acumulados, para fins de concessão de acréscimos ulteriores, sob o mesmo título ou idêntico fundamento”.

Por gerar a redação original certa dúvida ao intérprete, decorrente muito mais de uma má formulação do que de seu sentido, o Congresso, por meio da emenda 19, melhorando a redação do inciso XIV, quis tornar explicito que nenhum acréscimo pecuniário, ou seja, nenhuma vantagem pecuniária percebida por servidor público, pode ser computado ou acumulado para fins de concessão de acréscimos ulteriores.

Ou seja, uma vantagem pecuniária não pode ser utilizada ou aproveitada na base de cálculo de outra vantagem pecuniária.

Assim, a Emenda constitucional de número 19,  passou a vedar a sobreposição de valores recebidos a título de acréscimos pecuniários recebidos pelo servidor público, ainda que se trate de acréscimos pecuniários que não tenham entre si o mesmo título ou fundamento. (A redação original desse dispositivo constitucional somente vedava a sobreposição de acréscimos pecuniários apenas se tivesse entre si um mesmo título ou fundamento.)

Donde se deve concluir  que a Constituição da República de 1988, a partir de sua Emenda 19, estabeleceu a vedação a que as vantagens pecuniárias recebidas pelo serviço possam ser calculadas sobre elas mesmas, em um efeito de indevidamente onerar o custeio da folha de pessoal. A Emenda 19 veio, portanto, para vedar a incidência de vantagem pecuniária sobre vantagem pecuniária.

A propósito, vale lembrar a importante observação feita pelo conhecido juspublicista, HELY LOPES MEIRELLES, no sentido de que o fato de a Lei autorizar a incorporação definitiva de uma determinada vantagem pecuniária não significa que se tenha autorizado a “acumulação de adicional sobre adicional”. Tal acumulação, diz ele, somente poderia ser estabelecida por disposição expressa de lei (Estudos e Pareceres de Direito Público, v. II, p. 254, RT, 1977).

Destarte, em face da vigência e validez da Emenda constitucional de número 19, há regra constitucional expressamente vedando essa sobreposição de quaisquer acréscimos pecuniários, independentemente do título sob o qual recebidos.

A propósito do regime jurídico dos vencimentos e vantagens pecuniárias do servidor público, cabe adscrever algo relevante, mas de que boa parte da doutrina e jurisprudência não se dão conta, e que diz respeito à fonte histórica desse regime jurídico, o que é sempre de se levar em conta na interpretação da norma jurídica. Extrai-se, pois, da lição do insuperável juspublicista, MARCELLO CAETANO, cuja influência em nosso Direito Administrativo foi e continua intensa, o ensinamento (que está em seu famoso “Manual de Direito Administrativo”, p. 273-276, Coimbra editora, 1947) de que por “vencimento”  do servidor público há que se considerar o que lhe é pago periódica e regularmente, em contraprestação ao exercício das funções de seu cargo, e que o “vencimento” compreende formas variadas de remuneração, o que torna necessário classificar, de um lado,  o vencimento propriamente dito, e doutro,  os acessórios do vencimento, sendo estes integrados pelos vencimentos de categoria e vencimento de exercício, o que, em nosso Ordenamento Jurídico denominam-se “vantagens pecuniárias”, divididas em gratificação e adicional por tempo de serviço, e que as vantagens pecuniárias compõem, portanto, tudo o que ao servidor público é pago além do vencimento, a dizer, além daquilo que ele  recebe normalmente pelo exercício de seu cargo, abrangendo até mesmo os valores que não constituem retribuição de serviços, mas indenizações de despesas ou encargos, caso, por exemplo, da ajuda de custo. Essa é a fonte histórica do regime jurídico dos “vencimentos” do servidor público, e que foi integrada a nosso Ordenamento Jurídico em vigor com aquela feição descrita pelo grande juspublicista português.

Destarte, como no Direito Brasileiro, diante da regra constitucional  que veda o aproveitamento na base de cálculo de uma determinada vantagem pecuniária o que o servidor público recebe a título de outra vantagem pecuniária, conforme estatui o inciso XIV do artigo 37 da Constituição da República de 1988, daí decorre que nenhuma vantagem pecuniária, seja a que se revele pagamento pelo exercício de alguma função especial ou não, seja  ainda na forma de um abono ou licença, o respectivo valor não pode ser valor ser aproveitado na base de cálculo de outra vantagem pecuniária, por força de vedação legal.

Não se pode confundir, pois, a incorporação de uma vantagem pecuniária com a figura do aproveitamento da vantagem pecuniária na base de cálculo de outra. A norma constitucional permite a incorporação, mas veda o aproveitamento na base de cálculo.

A despeito de uma norma constitucional tão clara quanto ao do inciso XIV do artigo 37 vedar que uma vantagem pecuniária seja aproveitada na base de cálculo de outra, considerável parte da jurisprudência extrai dessa norma uma interpretação totalmente contrária a seu conteúdo e alcance, e o que é pior, adotou essa interpretação “contra-legem” como tese jurídica, para a tornar obrigatória, produzindo efeitos devastadores aos cofres públicos, dado que, com a permissão para que uma vantagem pecuniária seja calculada sobre outra, os vencimentos de servidor público em muitos casos são dobrados.

A reforma administrativa poderá, em boa hora, tornar ainda mais explícita essa norma constitucional. Apenas com essa singela providência a reforma administrativa terá produzidos significativos resultados em termos de proteção às finanças públicas.

 

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