O Supremo Tribunal Federal  julgou constitucional a cobrança de ICMS (Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) sobre operação de importação realizada por pessoa física ou jurídica, ainda que esta não se dedique habitualmente ao comércio ou à prestação de serviços (RE 1221330).

Reproduzo sentença proferida em 2018, em que tratei do tema.


Processo número 1004775-52.2018
Juízo de Direito da 3ª.Vara do Juizado Especial da Fazenda Pública
Comarca da Capital

Vistos.

Tendo realizado a operação de importação de mercadoria (veículo descrito na peça inicial), questiona o autor, (…), qualificado a folha 1, a incidência do ICMS – Imposto sobre a Circulação de Mercadorias, que o Fisco do Estado de São Paulo lhe está a exigir, sustentando que, em não sendo habitual contribuinte do ICMS, senão que a importação do veículo destina-se a uso próprio, não poderia suportar a exação, e ainda, que a despeito da Emenda Constitucional de número 33/2001, a Legislação do Estado de São Paulo de número 11.001/2001 não é válida, por não ter respeitado o “fluxo de positivação”.

Nesse, contexto, FUNDAMENTO e DECIDO.

Discute-se nesta ação acerca da tributação pelo ICMS sobre operação de importação de mercadoria (veículo), realizada sob o regime jurídico estabelecido a partir da Emenda Constitucional de número 31/2001.

Não há matéria preliminar que penda de análise.

Quanto ao mérito da pretensão.

A partir da Emenda Constitucional de número 33, modificou-se a sujeição passiva do ICMS, deixando-se de se exigir, na operação de importação de mercadoria, a condição pessoal do importador como contribuinte habitual do ICMS. Sustenta o autor, pois, que conquanto a norma constitucional tenha previsto tal incidência, a Legislação do Estado de São Paulo não é válida, porque não estaria atendido o requisito do “fluxo da positivação”, que o egrégio Supremo Tribunal Federal impõe quando analisa a validez de legislação infraconstitucional anterior a uma norma constitucional.

Com efeito, o Supremo Tribunal Federal adotou o entendimento de que, em nosso Ordenamento Jurídico em vigor, não há o que o Ministro LUIS ROBERTO BARROSO denomina de “constitucionalidade superveniente”, e que por isso, ao menos em matéria tributária em virtude do princípio da legalidade, surgindo uma norma constitucional, como ocorreu, por exemplo, com a Emenda Constitucional de número 33 (que ampliou a hipótese de incidência do ICMS), a legislação local, a dizer, aquela editada pelo Estado-membro e que seja anterior à mudança da norma constitucional, essa legislação local teria que se novamente editada, para que se observe o que ele denomina de “fluxo de positivação”.

Tal entendimento, “concessa venia”, não pode prevalecer.
Há algum tempo, embora não muito recuado, viceja em nossa doutrina e jurisprudência o vezo de dar nomes novos a coisas velhas, com o claro objetivo de tentar fazer com que uma argumentação que, em verdade, já foi analisada e rejeitada, possa parecer que não o tenha sido, e quiçá prevaleça, quando antes não o fora. É o que sucede com o “novo” instituto, ao qual se deu o espaventoso nome de “fluxo de positivação”, que nada mais é do que o tradicional e antigo instituto da “recepção”, que consiste na análise, no campo da hermenêutica, da validez de uma norma infraconstitucional em face de um ordenamento jurídico instaurado a partir de uma nova constituição, ou da modificação de suas normas em procedimento de revisão.

Pois o que sob color de se estar a aplicar o instituto do “fluxo de positivação”, está-se apenas a fazer o que antes se fazia quando o operador do direito coteja a validez de normas anteriores à constituição com o novo texto constitucional, para poder definir se tais normas (as anteriores) tinham ou não sido recepcionadas em face de um novo ordenamento jurídico.

Na análise que se realiza quando se aplica a teoria da recepção, leva-se em conta o princípio da hierarquia e da preferência que a norma constitucional apresenta em face de normas infraconstitucionais anteriores a ela. É o que afirma o ilustre constitucionalista português, GOMES CANOTILHO:

“A norma de hierarquia superior reúne, em via de princípio, duas modalidades de preferência: (1) preferência de validade, tornando nulas as normas anteriores contrárias (‘efeito de revogação’, ‘efeito de anulação’) e servindo de limite jurídico às normas posteriores também em contradição com elas; (2) preferência de aplicação, porque mesmo não aniquilando a validade da norma contrária, ela deverá ser aplicada no caso concreto com a consequente desaplicação da norma inferior”. (Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 4ª. edição, p. 680-681, Almedina).

Assim, quando se analisa a validez de uma norma infraconstitucional anterior em face de uma nova constituição, ou de uma norma produzida em revisão – a dizer, quando se aplica a vetusta teoria da recepção, chame-a pelo nome que a ela se quiser dar –, o que se está a fazer é a aplicação do princípio da hierarquia e com ele das duas “preferências” mencionadas pelo ensinamento do seguro constitucionalista português. Deve-se analisar, pois, se o conteúdo e o alcance de uma nova norma constitucional conflitam com o conteúdo e alcance de uma nova infraconstitucional anterior, cabendo ao intérprete identificar se o conflito é de tal dimensão que a norma infraconstitucional poderá ter perdido ou não toda a sua validez.

Importante observar que a Constituição de 1988 não se caracteriza como um fenômeno jurídico-social-político que a doutrina denomina de “descontinuidade constitucional”, que sucede quando uma nova ordem constitucional implica em uma ruptura com a ordem constitucional anterior (cf. CANOTILHO, obra mencionada, p. 195). Sim, porque a Constituição de 1988 surgiu a partir de uma assembleia nacional constitucional que foi aprovada no e conforme as regras do regime jurídico instituído pela Constituição de 1967/1969, de modo que, em não se tendo caracterizado, entre nós, a “descontinuidade constitucional”, é de se presumir que as normas infraconstitucionais anteriores à Constituição de 1988 tenham sido recepcionadas pelo novo Ordenamento Jurídico estabelecido pela Constituição de 1988, uma presunção que é relativa, porque cede passo quando, submetida á teoria da recepção, constata-se que seu conteúdo e seu alcance conflitam com a nova norma constitucional, caso em que a norma infraconstitucional terá perdido sua validez.

E se temos que reconhecer, pela razão apontada, que há uma “continuidade constitucional” entre a Constituição de 1988 e o regime jurídico da Constituição anterior (de 1967/1969), então teremos que admitir, e com mais forte razão, que a Emenda constitucional de número 33 surgiu em um ambiente de continuidade constitucional, porque surge em decorrência do mecanismo de revisão. O que nos conduz a reconhecer que se trata de uma nova norma constitucional produzida dentro de um ambiente de total continuidade constitucional, o que significa dizer que a presunção de validez de que dotadas as normas anteriores a ela (anteriores, pois, à Emenda 33) é de ser prestigiada, sobretudo se estivermos a analisar a validez de uma norma que surgiu já quando em vigor a Constituição de 1988, como é o caso da Legislação do Estado de São Paulo e que instituiu o ICMS, legislação toda ela em perfeita consonância com o texto constitucional de 1988.

Nada mais equivocado, portanto, do que afirmar-se que em nosso Direito positivo não há o “constitucionalismo superveniente”. Ele existe e decorre tanto do princípio da continuidade constitucional, quanto do princípio da hierarquia, e não há nenhuma particularidade no campo do Direito Tributário que modifique essa conclusão.

Do que se pode concluir que o fato de uma norma infraconstitucional de natureza tributária ser anterior a uma nova norma constitucional produzida pelo mecanismo da revisão (como ocorreu, pois, com a Emenda constitucional de número 33), não é, só por si, um fator que a torne inconstitucional, formal ou materialmente falando. De resto, a presunção é de que a norma infraconstitucional será válida, ao menos até que se conclua o contrário a partir do cotejamento com a nova constitucional superveniente. Portanto, será sempre necessário verificar se o conteúdo e alcance dessa norma infraconstitucional anterior são compatíveis com o conteúdo e alcance da nova norma constitucional, aplicando-se aí os métodos da hermenêutica.

Consideremos, sob esse enfoque (a dizer, sob a aplicação da teoria da recepção), a norma que compõe a Legislação do Estado de São Paulo relativa ao ICMS, e fundada na qual o Fisco está a exigir do autor o recolhimento do ICMS incidente sobre a operação que ele realizou e que se materializou na importação de um veículo, para verificarmos se o conteúdo e o alcance dessa norma local são consentâneos com o conteúdo e alcance da Emenda constitucional de número 33.

Devemos considerar, pois, que o Legislador conta com a liberdade necessária para modificar os elementos objetivos e subjetivos que compõem a hipótese de incidência tributária, desde que com essa modificação não desnature substancialmente a conformação do tributo. Nada impede, pois, que, respeitado esse limite, uma determinada condição pessoal seja modificada no pressuposto do fato imponível, como ocorreu com a referida Emenda 33, que deixou de ressalvar a condição de contribuinte habitual do ICMS daquele que importa mercadoria, para assim sujeitá-lo à tributação ainda que não seja contribuinte habitual desse imposto, consequência direta de não mais se perquirir acerca da finalidade da mercadoria que é importada (outro elemento modificado no pressuposto do fato imponível do ICMS).

Destarte, essas modificações no pressuposto do fato imponível guardam relação direta com a base econômica do ICMS, radicada no ato que envolve a operação de circulação de mercadorias, e por isso devem prevalecer, não havendo aí nenhuma inconstitucionalidade formal material, e não havendo também nenhum direito fundamental do contribuinte que tenha sido indevidamente afrontado em virtude das modificações levadas a cabo pela Emenda 33.

Assim, a norma infraconstitucional que instituiu o ICMS no Estado de São Paulo guarda perfeita harmonia com o texto da Emenda Constitucional de número 33, e por isso, recepcionada por essa norma constitucional, mantém-se válida, vigente e plenamente eficaz.

POSTO ISSO, JULGO IMPROCEDENTE o pedido, declarando a extinção deste processo, com resolução do mérito, nos termos do artigo 487, inciso I, do Código de Processo Civil.

Quanto a encargos de sucumbência, prevalece a regra do artigo 55 da Lei federal de número 9.099, de modo que, em não se tendo caracterizado a prática pelo autor de ato de litigância de má-fé, não se lhe pode impor o pagamento de qualquer encargo dessa natureza, sequer honorários de advogado.

Publique-se, registre-se e sejam as partes intimadas desta Sentença.

São Paulo, em 5 de julho de 2018.

VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
JUIZ DE DIREITO

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