Depois de termos visto, na introdução aos comentários ao artigo 77, que o nosso CPC/2015 abandonou a índole marcadamente ética que fora adotada pelo CPC/1973, mitigando essa índole,  e de termos estabelecido uma distinção doutrinária entre os institutos da litigância de má-fé e do abuso de direito,  analisaremos, nesta segunda parte,  o dever de dizer a verdade, que como tal, ou seja, como um dever jurídico-legal é imposto às partes, a seus procuradores e a todos os que intervém na relação jurídico-processual.

Se hoje não há uma consistente resistência da doutrina quanto a necessidade de a lei instituir o dever de dizer a verdade no processo, para que isso ocorresse foi necessário percorrer um longo trajeto. Entre nós, João Bonumá representava  o pensamento contrário a se poder impor o dever de dizer a verdade no processo, como se colhe de sua mais conhecida obra, “Direito Processual Civil”, publicada em 1946, o que dá bem a noção de quão resistente, no tempo e na intensidade, mostrou-se a predita objeção:

“Certo é que as partes devem dizer a verdade, mesmo quando essa verdade as prejudica. Mas esse é um dever moral, não um dever jurídico. As mais das vezes, as partes ou se excedem no referir os fatos da demanda, ou os referem alterados inconscientemente e ao sabor de suas conveniências, ou simplesmente silenciam sobre circunstâncias que lhes parecem desfavoráveis. Moralmente esse procedimento é indesculpável, mas, juridicamente, é impossível evitá-lo. Desde que não se evidencie o dolo, a malícia, produtos de um prejuízo desnecessário à parte adversa, não há na lei possibilidade de sanções. Dar, em tais casos, ao juiz, poderes para punir desvios da consciência moral é afastá-lo de sua missão e transformá-lo em censor”.

Baseada no argumento de que se tratava apenas de um dever de conteúdo ético, cuja aplicação a estrutura dialética do processo obstava, entendia a doutrina, capitaneada por Carnelutti, que não era possível consagrá-lo em texto legal, porque embora se reconhece-se, no plano lógico, a obrigação de a parte dizer a verdade, no plano prático, obtemperava-se, havia um intransponível obstáculo: o princípio dispositivo e a liberdade que por sua aplicação concede-se aos litigantes.

Decorre basicamente de dois fatores o equívoco da doutrina que  defendia  a tese de que o dever de dizer a verdade é de matriz puramente subjetiva: de uma incorreta intelecção do que é a verdade, gerada a partir de uma inadequada leitura, ou ainda de uma açodada leitura dos textos filosóficos que cuidaram desse tormentoso tema, e ainda do desconsiderar que o elemento intencional não pode ser confundido com a verdade em si.

Mas o fato é que as legislações processuais deixaram de considerar a problemática filosófica acerca do conceito de “verdade”, e com uma finalidade puramente prática passaram a considerar esse dever circunscrito àqueles fatos que dizem respeito à conformação essencial da lide, fatos que, assim, não podem ser dolosamente subtraídos ao conhecimento  do juiz, ou não podem ser manipulados artificialmente pela parte (alteração da verdade).

Incorre a doutrina em equívoco quando afirma que o dever de dizer a verdade aplica-se apenas aos fatos, e não ao direito, dado que aí prevaleceria o princípio do “iura novit curia”. Considere-se, a título de exemplo, a conduta da parte que, dolosamente,  invoca uma norma inexistente, apenas para conduzir o juiz ao equívoco de  subsumir os fatos alegados a essa norma inexistente. Poder-se-ia argumentar que o juiz terá o dever de apurar se a norma existe ou não, mas esse dever também lhe é imposto quanto aos fatos, sem o que, aliás, ele não poderia afirmar houvesse violação ao dever de dizer a verdade, se não cuidasse apurá-los.

O que o dever de dizer a verdade impõe à parte, a seus procuradores e a todos aqueles que intervém no processo é que não manipulem a verdade, seja quanto aos fatos essenciais que compõem a lide, seja quanto às normas que, na visão das partes, deveriam ser aplicadas a esses mesmos fatos, de modo que a atuação no processo revele-se de acordo com o que exige a probidade.

 

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