LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ X ABUSO DE DIREITO.
A uma origem comum, baseada na intromissão no processo civil da reflexão valorativa, é que se pode creditar a confusão que desde o início se instalou, e que radica na indevida assimilação do instituto da litigância de má-fé ao do abuso de direito. As obras de doutrina, as mais conceituadas, a jurisprudência mais vetusta, inclusive aquela da lavra dos tribunais franceses, idealizadores, em verdade, do abuso de direito como categoria jurídica, enfim, todos fazem uso indistinto dessa consagrada expressão para, com ela, alcançar os casos de litigância de má-fé.
Diferentemente do que ocorre no ato ilícito, pois, em que se caracteriza a violação do dever jurídico, e com isso a estrutura jurídico-formal da norma é transgredida, no caso do abuso de direito tal estrutura é respeitada, e por esse motivo “o titular actua no seu direito, move-se dentro dele, mas, na realidade, comportamento e direito opõem-se pelo concreto sentido que um e outro possuem diferentemente”; e se a forma está presente, “o seu preciso valor está ausente, a realidade finge o direito”, como afirma Fernando Augusto Cunha de Sá, em importante obra que dedicou ao tema.
É dizer: o aspecto teleológico da norma jurídica é violado, à proporção que o titular do direito subjetivo age com um fim diverso daquele definido pelo comando legal, embora respeite a estrutura jurídico-formal da norma. Eis, em resumo, o que é a figura do abuso de direito.
No ato abusivo, por conseguinte, o titular do direito subjetivo, malgrado respeite o comando normativo (rectius: dever jurídico), atua, consciente ou inconscientemente, contra o valor que forma o conteúdo da norma jurídica, o que não quer significar que aja com dolo ou com culpa. De resto, assim não age no plano jurídico.
Mas no caso da litigância de má-fé, não há um abuso do direito de litigar, senão que a prática de um ato ilícito na prática dos atos processuais, exigindo o nosso CPC/2015 (tanto quanto o fazia o CPC/1973) o dolo como elemento subjetivo indispensável à caracterização da figura da litigância de má-fé.
Assim, se no abuso de direito há o exercício incorreto de um determinado direito subjetivo, avaliado sob o prisma do fim ou da finalidade (que se consubstancia no valor jurídico), na litigância de má-fé está presente a violação dolosa a um dever-jurídico-legal, configurando-se a figura do ato ilícito no processo.
As condutas que estão fixadas no artigo 77 do CPC/2015 configuram deveres jurídicos, e a sua violação dolosa caracteriza a litigância de má-fé. Não há aí abuso de direito, senão que a prática de um ato ilícito que é comumente designado como “litigância de má-fé”.