Em alguns Estados brasileiros (no Maranhão, por exemplo), o Poder Executivo ajuizou ação pleiteando ao Poder Judiciário que decrete a medida de “lockdown” (confinamento de pessoas), alegando se tratar de uma medida necessária para evitar a propagação do contágio pelo “Coronavírus”. Instalou-se, assim,  controvérsia quanto à possibilidade jurídico-legal de o Poder Judiciário decretar essa medida. Analisemos essa interessante questão.

O ordenamento jurídico não regula todas as condutas dos particulares. Há uma espaço de liberdade que é deixado sem regulamentação. É o que KELSEN chama de “mínimo de liberdade”:

“A liberdade que, pela ordem jurídica, é negativamente deixada aos indivíduos pelo simples fato de aquela não lhes proibir uma determinada conduta, deve ser distinguida da liberdade que a ordem jurídica positivamente lhes garante. A liberdade de uma pessoa que assenta no fato de uma determinada conduta lhe ser permitida, por não ser proibida, é garantida pela ordem jurídica apenas na medida em que esta prescreve às outras pessoas o respeito desta liberdade, isto é, proíbe a conduta pela qual alguém é impedido de realizar uma conduta que lhe não é interdita e, neste sentido, lhe é permitida. Somente então pode a conduta não proibida – e, neste sentido negativo, permitida — valer como direito, isto é, como conteúdo de um direito que é o reflexo de uma obrigação que lhe corresponde.” (“Teoria Pura do Direito”, página 46, editora Martins Fontes).

A conduta praticada pelo indivíduo dentro desse “mínimo de liberdade” não é contrária à Lei; ela é permitida negativamente, ainda segundo a denominação de KELSEN. Destarte, porque a ordem jurídica não proíbe, a conduta do particular é livre nesses casos.

Mas, em face de um conduta negativamente permitida é possível a existência de um conflito de interesses. Mais uma vez o genial KELSEN:

“Se não é proibida (e, neste sentido, é permitida) a conduta de um indivíduo que é contrária à conduta de um outro indivíduo também não proibida (e, neste sentido, permitida), é possível um conflito face ao qual a ordem jurídica não toma qualquer disposição. Esta não procura evitá-lo, como o faz relativamente a outros conflitos, proibindo a conduta de um indivíduo que é contrária à do outro – ou, por outras palavras, proibindo a realização do interesse de um que é contrário ao interesse de um outro. A ordem jurídica não pode, de forma alguma, procurar impedir todos os conflitos possíveis. O que pelas modernas ordens jurídicas é — pode afirmar-se — proibido sem exceção é o obstar a conduta não proibida de outrem pelo recurso à força física. Na verdade, o emprego da força física, isto é, a realização de um ato coercitivo, é em princípio proibida, exceto quando seja positivamente consentida a determinadas pessoas, exceto quando a determinadas pessoas se confira poder ou competência para tal”. (obra mencionada, páginas 46/48).

Ao condicionar ou restringir uma determinada atividade, poderá o Estado estar diante de uma conduta negativamente permitida ao particular pelo ordenamento jurídico. Surgindo aí um conflito, deverá este ser resolvido pelo Poder Judiciário, sendo vedado à Administração, “in casu”, utilizar-se da autoexecutoriedade do ato administrativo. É que a conduta do particular em si não é ilícita. Imagine-se um exemplo: a poda de árvores que estejam em área próxima a uma aeroporto, e que estejam, em face da altura que atingiram, criando problema de segurança de voo. Se o particular obstaculizar a ação da Administração, impedindo assim o corte dessa árvores, o Estado não poderá executar por si a poda, devendo nesse caso socorrer-se do Poder Judiciário. É que a conduta de plantar árvores em propriedade particular não é em si ilícita; e como a Lei não a proíbe, essa conduta é tida como permitida (negativamente regulamentada).

Mas, a situação é diversa se o ordenamento jurídico regula determinada conduta do particular, proibindo-a num sentido positivo; o Estado, então, poderá, exercendo o poder de polícia, impedi-la. Nesse caso, a Lei garante ao Estado a autodefesa, nomeadamente em face do interesse público.

É certo que a reação ao ato ilícito é centralizada cada vez mais na atuação do Poder Judiciário, como órgão dotado do poder para compor os conflitos, atuando o direito objetivo. Mas ainda assim subsiste, inevitavelmente, um mínimo de autodefesa, como sucede com o cidadão em geral, por exemplo com a legítima defesa e com o poder de correção do pai em relação ao filho.

Ao Estado, mormente em face do interesse público, também deve-se assegurar um mínimo de autodefesa. Daí porque se justifica a autoexecutoriedade, que, segundo HELY LOPES MEIRELLES, é “faculdade de a Administração decidir e executar diretamente a sua decisão por seus próprios meios, sem intervenção do Judiciário”, — como atributo do poder de polícia.

O critério, portanto, que deve nortear a possibilidade de autoexecutoriedade dos atos administrativos é a conduta do particular, se lícita (negativa ou positivamente regulamentada) ou ilícita. Diante de uma conduta lícita, surgindo o conflito, o Estado terá que se socorrer do direito de ação para buscar do Poder Judiciário a tutela que lhe permitirá condicionar, restringir ou impedir a atividade (lícita do particular). Entretanto, se a conduta for ilícita, a autodefesa garante-lhe a auto-executoriedade do ato administrativo.

Como pontifica o insuperável HELY LOPES MEIRELLES em sua famosa obra “Direito de Construir”:

“A autoexecutoriedade do ato de polícia administrativa é hoje reconhecida uniformemente pela doutrina. Quando se diz que o ato de polícia é auto-executório, pretende-se significar que ele traz em si mesmo a possibilidade de execução direta e imediata pela Administração. Em regra, para a prática do ato de polícia administrativa não há necessidade de prévia apreciação e decisão judiciária. A Administração fá-lo executar com seus próprios meios, garantida pela força pública, se necessário, ainda que o ato importe em apreensão ou destruição de coisas, embargo de construção, demolição de obras, interdição de atividade e o que mais se contiver na competência da autoridade administrativa que o determina.
“A propósito decidiu o Tribunal de Justiça de S. Paulo, em Sessão Plenária, que, em se tratando de ato de polícia administrativa, nenhuma procedência tem a objeção de que a execução sumária pela Administração Pública pode lesar o indivíduo na sua liberdade ou no seu patrimônio. E o mesmo acórdão rematou: ‘Exigir-se prévia autorização do Poder Judiciário equivale a negar-se o próprio poder de polícia administrativa, cujo ato tem de ser sumário, direto e imediato, sem as delongas e complicações de um processo judiciário prévio’.
“Nem se opõe a essa conclusão o disposto nos arts. 287, 934 e 936 do Código de Processo Civil, uma vez que o pedido cominatório concedido ao Município é simples faculdade para acertamento judicial prévio das relações entre o particular e o Poder Público, se assim o desejar a Administração. Nesse sentido já decidiu o Supremo Tribunal Federal, concluindo que no exercício regular da autotutela administrativa, pode a Administração executar diretamente os atos emanados de seu poder de polícia, sem utilizar-se de pedido cominatório que é posto à sua disposição em caráter facultativo”. (“Direito de Construir, páginas 91/92, 3ª edição, Editora Revista dos Tribunais, 1979).

Com efeito, diante de uma conduta ilícita, inverte-se a posição: é ao eventual prejudicado em decorrência da autoexecutoriedade do ato administrativo que competirá socorrer-se do processo judicial. Ainda HELY, cuidando de explicitar — com a costumeira acuidade — a gênese e a essência que dão azo à diversidade de regimes:

“Ao particular que se sentir ofendido pelo ato de polícia da Administração é que cabe recorrer ao Judiciário, uma vez que não pode fazer justiça por suas próprias mãos. E sobejam razões para essa diversidade de tratamento entre o particular e o Poder Público, porque aquele cuida egoisticamente de seus direitos e este tutela ou deve tutelar, altruisticamente o interesse da coletividade. Daí a judiciosa ponderação de Seabra Fagundes de que ‘a atividade administrativa resultaria inútil, às mais das vezes, e interesses dos mais relevantes seriam preteridos irremediavelmente, se, à simples oposição do sujeito passivo das obrigações públicas, carecesse o administrador de meios coercitivos imediatos para removê-lo. O próprio conceito de Poder Público leva à explicação dessa excepcional faculdade de exigir coativamente, por ato próprio e diretamente do administrado, o cumprimento sumário das prestações de que seja devedor”. (obra mencionada, página 92).

O Estado, portanto, em decorrência do mínimo de autodefesa que o Ordenamento Jurídico lhe assegura, pode executar diretamente o ato administrativo decorrente do poder de polícia, sobretudo agora entre nós, em face do que dispõe o artigo 37, “caput”, da Constituição da República, com a nova redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional de número 19, enfatizando a eficiência pela qual deve se conduzir a Administração Público no exercício das atividades que a Lei lhe confere. Eficiência que pode ser interpretada sob dois sentidos: um, que se liga à qualidade da atividade exigida do Poder Público (e que envolve também a presteza), e outro, no sentido de custo econômico (que será evitado, na medida em que os custos do processo não existirão).

De modo que se o Poder Executivo, legislando acerca de uma matéria que é de se atribuição (e o Supremo Tribunal Federal decidiu que os estados-membros e os municípios possuem autonomia para decretar medidas de isolamento social), edita lei que impõe  “lockdown”, tornando a conduta contrária como um ato ilícito, tem o Poder Executivo a sua disposição o poder de executar diretamente  tudo o que for necessário para garantir eficácia à sua legislação, não havendo necessidade de buscar a tutela jurisdicional para implementar um poder que é autoexecutável, a ser exercido diretamente pelo Poder Executivo em face do interesse público, que, aliás, é o que justifica e legitima o poder de autoexecutoriedade dos atos administrativos.

Destarte, deve-se reconhecer a carência de ação por ausência do interesse de agir, quando o Poder Executivo quer obter por meio do processo a implementação prática de uma medida que já integra a sua legislação, e para a execução da qual dispõe do poder que a Constituição de 1988 reconhece-lhe.

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