ROLAND BARTHES (1915-1980), em seu livro “O Grau Zero da Escrita”, analisando a relação que indissociavelmente se estabelece entre a escrita e as escolhas que, deliberadamente ou não, o escritor faz, ou esconde fazer, demonstra que é impossível uma escrita neutra, ainda quando o escritor a quisesse assim. É o que demonstra a tradução dos Evangelhos feita diretamente do grego pelo escritor e tradutor português, FREDERICO LOURENÇO, que buscou justificar a sua tradução sob o argumento de que não lhe cabia senão que o traduzir, evitando qualquer ideologia, quando ela pudesse surgir. FREDERICO LOURENÇO teria, assim, feito uma tradução “neutra” dos Evangelhos – ou pretendido fazer.
É que ao traduzir o Evangelho de JOÃO, FREDERICO LOURENÇO deparou-se com um difícil obstáculo: como traduzir o primeiro versículo, comumente traduzido como “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”? Abandonar o que consagrados tradutores, como o Padre JOÃO FERREIRA DE ALMEIDA, haviam feito, e substituir por “LOGOS”, o que, nessas traduções, surge como “VERBO”, ou manter a tradução como ela está fixada?
FREDERICO LOURENÇO optou por respeitar pelo uso consagrado, sem deixar, entretanto, de apor uma nota, em que tratou de justificar que, prevalecesse a sua posição, e a versão à Língua Portuguesa deveria adotar “LOGOS”, em lugar de “VERBO”, explicando ele que, no grego, “LOGOS” significa o verbo, ou seja, o ato de comunicação, mas vai além disso, para também expressar a ideia de que, por trás do que é comunicado, está a Razão. E seguindo a diretriz que ele próprio estabeleceu, a de não incidir em ideologia de qualquer espécie, traduziu como “VERBO”, e não como “LOGOS”.
Mas ao fazer essa escolha, FREDERICO LOURENÇO, não desobedeceu à sua própria diretriz? Sim, porque ao excluir do primeiro versículo de JOÃO a ideia de que, no princípio, era o Verbo, mas que era também a Razão, não está o insigne tradutor a colocar a ideologia, em lugar de a eliminar, como se isso fosse possível? Porque dizer que, no princípio, era o Verbo, mas era também a Razão, traduz à perfeição a ideia de que ao leitor da Bíblia se coloca uma tarefa de que não deve passivamente ouvir o que a Igreja Católica lhe diz, porque lhe é exigido aja com a Razão, para poder escolher, dentre as interpretações possíveis, aquela que a sua Razão considera como prevalecente. Não há dúvida, portanto, de que “LOGOS” exprime melhor essa ideia.
O fadário imposto ao escritor é, assim, o mesmo a que se submete o tradutor: o de não poder ser neutro, mesmo quando queira.