“Art. 373. O ônus da prova incumbe:
I – ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;
II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
§ 1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.
§ 2º A decisão prevista no § 1º deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil.
§ 3º A distribuição diversa do ônus da prova também pode ocorrer por convenção das partes, salvo quando:
I – recair sobre direito indisponível da parte;
II – tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito.
§ 4º A convenção de que trata o § 3º pode ser celebrada antes ou durante o processo”.
Comentários: ao tratarmos, por fim, dos “fatos” no contexto das provas, é de se observar não ser tão incomum como poderia parecer que operadores do Direito não se deixem levar pelo sentido comum, daquele que é dados pelos dicionários, com o que esquecem que o Direito frequentemente atribui um sentido específico a um determinado termo, e muitas vezes bastante distante daquele abonado pelos dicionários. É o que ocorre, por exemplo, com a expressão “fato modificativo” que compõe o enunciado do artigo 373, inciso II, do CPC/2015, que, aliás, repete o artigo 333, inciso II, do CPC/1973.
Com efeito, muitos operadores do Direito conferem ao termo “modificativo” um sentido comum, ou seja, algo que, alegado pelo réu em contestação, “modificaria” o direito subjetivo alegado pelo autor na petição inicial do processo. Sucede, contudo, que não é esse o sentido que é dado pela tradição do direito processual civil, construído sobretudo depois das preciosas lições de CHIOVENDA acerca dos fatos jurídicos no processo civil.
Consideremos, pois, o que são os “fatos” no contexto das provas, e como devem ser entendidos, no sentido específico que lhes é dado no campo do processo civil, os “fatos aquisitivos”, os “fatos impeditivos”, os “fatos extintivos”, e aqueles a que se dá o nome de “fatos modificativos”, tal como deles trata o artigo 373, em seus incisos I e II, do CPC/2015.
Um principal aspecto a ser imediatamente notado é que as alegações das partes no processo civil compõem-se necessariamente de fatos e do direito que a esses fatos se aplica, ou que se pretende seja aplicado. Assim, se o autor articula sua pretensão sem se referir a qualquer fato da vida concreta, limitando-se a invocar a aplicação das normas legais, o juiz reconhecerá a ausência do interesse de agir, na medida em que, não havendo um fato concreto, o autor não necessita da tutela jurisdicional. São os fatos concretos que fazem nascer a pretensão, tanto quanto a podem fazer extinta, como também a podem modificar, em algum grau significativos, os efeitos jurídicos extraídos de um direito subjetivo, quando se o reconhece. CHIOVENDA denomina-os “fatos jurídicos”, com o que sublinha que são fatos concretos surgidos na realidade, sobre o quais o Direito faz estender seu domínio, transformando-os em fatos jurídicos, e as provas têm por finalidade demonstrar que tais fatos ocorreram, ou que não ocorreram.
O autor possui, assim, o ônus de provar que um conreto fato da vida fez surgir a sua pretensão, descrevendo na petição inicial esse fato, e a ele associando uma norma legal, cuja aplicação pretende que o juiz reconheça como legítima. Mas se é indispensável indique o fato da vida real, não se exige do autor se refira a qualquer norma legal, porque o juiz possui o dever de a conhecer, e de a fazer aplicada ao caso em concreto.
Um “fato constitutivo” é, assim, o fato concreto que, segundo o autor, fez surgir a pretensão que ele, o autor, alega na petição inicial. Por exemplo, se o autor afirma ter comprado um produto, mas não o ter recebido do vendedor, esse fato – a compra e venda – é o que constitui a pretensão formulada no processo.
Ao autor, em condições normais, caberá fazer a prova do fato que fez constituir o direito que alega no processo, quando o réu nega tenha existido esse fato. Em sua resposta, o réu pode negar o fato alegado pelo autor, ou dar a esse fato uma valoração diversa. Diante desse tipo de defesa, o ônus da prova é atribuído ao autor, salvo alguma excepcionalidade que o CPC/2015 preveja como tal.
Em sua defesa, o réu também pode, reconhecendo exista os fatos alegados pelo autor, e, assim, o direito subjetivo por este alegado, outros fatos apresenta com o objetivo de demonstrar que aquele direito – o do autor – está extinto, assumindo o réu o ônus de prova quanto a esse fato extintivo, como se dá, por exemplo, quando a alegação do réu é de ter entregue a mercadoria objeto do contrato de compra venda. Os fatos extintivos são diametralmente opostos aos fatos aquisitivos.
O réu pode também alegar a ocorrência de “fatos impeditivos”, que, como observa MOACYR AMARAL SANTOS, decorrem de “circunstâncias que impedem decorra de um fato o efeito que lhe é normal, ou próprio, e que constitui a razão de ser”. A má-fé, por exemplo, pode, segundo assim dispuser o Legislador, constituir uma especial circunstância que, presente em uma relação jurídica, retira-lhe o efeito que, não existisse a má-fé, ocorreria. Donde a conclusão de que, no caso dos fatos impeditivos, devemos buscar na Lei a definição do que, em uma determinada relação jurídico-material, constitui aquilo que, ausente, pode obstar que um determinado direito subjetivo seja reconhecido.
No caso dos fatos modificativos, o réu reconheceu os fatos alegados pelo autor, tanto quanto reconhece a existência do direito subjetivo por ele alegado, mas alega existir uma determinada circunstância que atua diretamente nos efeitos desse mesmo direito subjetivo, modificando-o em algum significativo grau, como se dá, por exemplo, se, em uma ação de rescisão de contrato de compra e venda, alega o réu que, conquanto inadimplente, reconhecendo assim o direito de o autor pretender a rescisão do contrato, é-lhe de se reconhecer o direito de retenção quanto a benfeitorias que introduziu no imóvel objeto do contrato. Note-se que os fatos modificativos, uma vez comprovados, fazem reduzir ou limitar os efeitos jurídicos que o direito alegado pelo autor deva produzir na realidade do caso em concreto, sem, contudo, fazerem esse direito subjetivo desaparecer.