“A realidade não é expressa como ela mesma, mas sim como uma outra realidade”. (MARX, Crítica da Filosofia do Direito de Hegel).


Como por um passe de mágica a opinião pública despertou e se deu conta de que fora criada uma comissão para elaboração do projeto daquilo que poderá vir a ser o novo Código Civil, e que esse projeto já está pronto. Quiçá seja uma espécie de maldição a que estão submetidos no Brasil os projetos de Código Civil, que, ou dormitam, como aconteceu com o projeto capitaneado por MIGUEL REALE, ou que quem dormita é a opinião pública.

Mas algo felizmente fez com que a opinião pública saísse de sua sonolência, acordando para que possa refletir sobre aquilo que pretende moldar o nosso Código Civil no futuro. E, assim, os jornais estão agora, diuturna e saudavelmente, a expressar a sua preocupação com muitos aspectos envolvidos no projeto do Código Civil, provocando uma discussão que, a princípio, não havia se iniciado nem mesmo na comunidade jurídica, que, como dito, dormitava o sono dos justos.

O fato é que a discussão ganhou corpo, e tanto melhor que assim seja. Afinal,  o Código Civil é o corpo de leis mais rente à vida, compartilhando aquilo que o genial PONTES DE MIRANDA havia dito acerca do processo civil. Natural, portanto, que as pessoas em geral, juristas ou não, devam compreender em que a sua vida poderá mudar, se o projeto deixar de ser projeto e passar a ser o nosso novo Código Civil.

Poderíamos discutir aqui uma série de proposições que poderão causar importante influxo sobre as situações da vida quotidiana em seu aspecto jurídico. Poderíamos assim discutir sobre como o projeto encara o princípio da boa-fé, como ele está a mexer na ordem de vocação hereditária, ou ainda como a vida contratual pode ser importantemente afetada pelo projeto.

Mas a questão que aqui se propõe sobrepaira àquilo que forma a  estrutura desse projeto. Devemos assinar, pois, o seguinte: o nosso Direito Civil é o reflexo do Poder Econômico? Esse aspecto guarda direta relação com uma profunda alteração que o projeto do Código Civil traz ao tratar do poder hermenêutico que é concedido aos juízes em face de conceitos indeterminados.

Esse tema, aliás, tem merecido da opinião pública uma acentuada carga de preocupação, o que se justifica, seja porque a ampliação do poder hermenêutico aos juízes não é da tradição de nossa legislação no campo do Direito Civil, seja em virtude dos riscos que se podem lobrigar, considerando que os procedentes jurisprudenciais tornaram-se vinculantes, a ponto mesmo de se sobreporem à norma legal, obrigando os juízes a aplicarem-nos.

Daí o tema que se propõe à reflexão: o nosso Direito Civil é, ou pretende ser o reflexo do poder econômico? Esse âmbito de abordagem, importante observar,  não é novo na filosofia em geral e se deve creditar aos filósofos alemães uma primeira tomada de consciência acerca de como a legislação civil é a mais propensa a que os interesses econômicos possam invadir um terreno que a rigor não lhes seria próprio.

No Brasil,  devemos atentar para um outro aspecto que torna mais grave o problema, porque, ao lado do Código Civil, temos uma outra legislação que também impacta a vida do cidadão comum, que é o Código de Defesa do Consumidor, que tem conseguido, a duras penas, sobreviver, malgrado os interesses de grandes grupos econômicos, manifestados com veemência desde o momento em que se tentou junto ao Supremo Tribunal Federal a declaração de inconstitucionalidade da norma do Código de Defesa do Consumidor que coloca as instituições financeiras na relação de consumo. Felizmente, o Supremo Tribunal Federal rechaçou aquela iniciativa, o que sem dúvida fez com o Código de Defesa do Consumidor ganhasse uma importância ainda maior, o que, contudo, não vem impedindo que outras iniciativas com a mesma finalidade vicejem.

Destarte, deve-se olhar com atenção ao que o projeto do novo Código Civil propõe em temas que são compartilhados com o Código de Defesa do Consumidor, e são vários esses temas, porque pode estar escondida ali a verdadeira intenção, que é solapar as conquistas que o Código de Defesa do Consumidor até aqui implantou. E como sabem os grupos econômicos que será difícil encontrar um deputado ou senador que queira assinar um projeto que revogue o Código de Defesa do Consumidor, talvez mais fácil seria propor, por meio de um novo Código Civil, uma mudança enviesada, mas com a mesma finalidade.

Se o projeto do código civil propusesse ampliar o poder hermenêutico dos juízes, para assim restaurar a livre consciência dos magistrados, tolhida em grande parte pelas súmulas e teses vinculantes, e certamente teríamos um avanço em nossa legislação civil. Mas não é disso que se trata no projeto.

Engana-se quem pensa que se está aumentando o poder de interpretação dos juízes, porque não se diz, ou melhor se quer esconder o que as súmulas e teses vinculantes farão na prática, obrigando os juízes e tribunais a cumprirem-nas. A propósito, só para trazermos aqui um episódio recente e que bem poderá servir para dimensionar os riscos a que estamos nos referindo, basta lembrar de uma proposta de tese vinculante que, simplesmente, impedia os juízes de concederem medidas liminares ou de proferirem sentenças, obrigando os planos de saúde a fornecerem determinados medicamentos.

É em MARX, mais precisamente em sua “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”, que se lê a frase que introduz este pequeno ensaio. Nessa obra, MARX com sua habitual argúcia analisa com a legislação civil pode dar ao Estado um desmedido poder sobre as relações privadas das quais participa a sociedade civil, cujos interesses acabam cedendo passo aos interesses estatais, e como a razão não pode obstar que isso ocorra. Apenas uma consciência desperta o pode fazer.

 

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