Quando não estávamos (ou não sabíamos que estávamos) em uma sociedade pós-moderna, cujo grau de complexidade é altíssimo,  o Direito, para dar uma satisfação diante de problemas que lhe pareciam exigir mais do que ele, o Direito, poderia dar, criou-se então a teoria, surgida no direito alemão, denominada de “Teoria da Reserva do Possível”, também chamada por alguns que, provavelmente eram leitores de SHAKESPEARE, de “Teoria da Escolha Trágica”. Segundo essa teoria, conquanto exista um direito subjetivo em face do Estado, e que esse direito tenha sido  judicialmente reconhecido, sua implantação somente pode ir até aonde vão os recursos orçamentários disponíveis, o que, na prática, significa que o direito subjetivo não existe. A opinião pública deu-se conta de que o Direito pode muito, mas não pode tudo.

E com isso o Direito foi tentando lidar com indesejadas situações que testavam a sua efetividade. Mas não aquela efetividade de que os livros do Direito em geral tratam, e que é meramente simbólica, senão que a efetividade real, aquela com a qual as pessoas comuns se preocupam quando se utilizam do processo judicial.

Mas, com o acentuado aumento no grau de complexidade que envolve as relações sociais,  ao tempo, pois, em que a nossa sociedade alcançou o estágio que caracteriza a “sociedade pós-moderna”, a Teoria da Reserva do Possível parecia a prova viva de que como eram ainda incipientes os problemas com os quais o Direito lidava na questão de sua efetividade. Outros problemas, e mais graves problemas surgiriam. E surgiram.

Com efeito, o Direito está agora colocado diante de problemas muito mais sensíveis e graves. Vamos a dois exemplos de nossos dias e que são suficientemente emblemáticos para demonstrarem quais são os riscos envolvidos. Um exemplo brasileiro, outro vindo dos Estados Unidos.

No Brasil, o Congresso Nacional é, na prática, o dono do orçamento, em que o Governo Federal exerce apenas uma posse, tão precária que, a rigor, a deveríamos classificar como uma mera detenção. Pois que é  o Congresso Nacional que, criando as emendas, destina de fato e de direito para onde vai o grosso do dinheiro público. E, obviamente, importa a todos nós sabermos para onde esse dinheiro vai. Mas como não estão os congressistas obrigados a identificar o autor da emenda, e como o destino final dessas emendas é tão desconhecido, quanto o próprio autor da emenda (segundo o Tribunal de Contas, apenas 25% das emendas podem ser rastreadas totalmente), surgiu um questionamento judicial para o qual o Supremo Tribunal Federal foi provocado a dar uma decisão, e ele deu, declarando enfaticamente que todas as emendas devem ser identificadas, seja quanto a seu autor, seja quanto a seu destino. Esperava-se que o Congresso Nacional cumpriria a decisão judicial. Mas ele não o fez, e provavelmente não o fará, testando, assim, os limites do Direito.

Nos Estados Unidos, um juiz federal decidiu impedir que o Governo Trump repatriasse uma centena de pessoas, concedendo, pois, uma ordem judicial nesse sentido. O governo, contudo, fingiu que não viu e não leu a decisão judicial, e aquelas pessoas foram repatriadas, e não bastasse o insólito da situação,  o presidente norte-americano ainda disse enfaticamente que o juiz norte-americano pertencia a uma “perigosa esquerda”, tratando-o como se fosse um perigoso comunista, cujas decisões ele não poderia cumprir.

Portanto, em ambas as situações os limites do Direito estão a ser perigosamente  testados, mas não mais como ocorria quando se cuidava apenas de aspectos orçamentários. Agora, o problema é bem mais sério, seríssimo, devemos dizer, porque, em verdade, não são apenas os limites do Direito que estão a ser testados, senão que o Estado de Direito e, consequentemente a Democracia, fundada que está na separação entre os Poderes e na relação harmoniosa que deve existir entre eles, entendendo-se por “harmonia” a necessidade de que os demais Poderes cumpram as ordens judiciais, sem o que o jogo democrático não existe na prática.

Mas o que está na base desse novo e crucial fenômeno, e o que o torna perigoso para a Democracia? É que o Estado está a questionar a legitimidade do Poder Judiciário para decidir sobre determinadas questões, alegando que elas podem até ter um conteúdo jurídico, mas que, em essência, esse conteúdo é puramente político, como que reinstalando a velha discussão surgida em especial na Alemanha, quando ali se fez aplicar pela primeira vez o princípio da proporcionalidade como mecanismo pelo qual o Poder Judiciário poderia analisar se uma determinada medida estatal não teria ido além do que se deva qualificar juridicamente como razoável e proporcional.

É certo que esse fenômeno que ora vivenciamos não é de todo inédito na história. Lembremos, por exemplo, do caso “Dreyfus” que parou a França no século dezenove. Tratava-se de um oficial que, só por ser judeu, foi injustamente acusado e condenado pelo crime de traição à pátria. O processo de revisão da pena fora durante muito tempo impedido de se iniciar porque muitos juristas e intelectuais argumentavam que havia uma coisa acima da Justiça, acima mesmo da verdade, que era a segurança nacional. Mas, com marchas e contramarchas, o Direito venceu e seus limites foram estendidos.

Vivemos, contudo, uma outra realidade, outros problemas, mais complexos, em que não está em questão a ideia abstrata ou concreta de justiça. O que está propriamente em questão são os limites em que o Direito pode e deve operar em uma Democracia, quando os demais Poderes não reconhecem que o Direito, ou melhor, o sistema de Justiça pode dar soluções a determinados casos. Atingimos, mais rápido do que podíamos supor, o maior grau de complexidade com o qual uma Democracia pode lidar. Resta saber se a Democracia pode lidar com esse problema.

 

 

 

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