Nesta última semana, nosso noticiário foi tomado pelo uso do termo “soberania”. Como não se trata de uma palavra de uso corrente, toda a gente ficou curiosa não apenas por saber do que se tratava, mas também por descobrir que temos uma soberania desde 1822, ou mais propriamente desde 1815, quando o Brasil deixou de ser Colônia de Portugal. Mas por que razão estaríamos a tratar de algo que é tão antigo, tão enraizado, tão nosso, que a rigor não seria sequer o caso de estamos a nos referir à soberania, já que a possuímos há tanto tempo?
Mas afinal o que é soberania? Quando o Direito não sabe, ou não pode definir bem uma ideia, ele cria um conceito indeterminado. É mesmo de se perguntar se o Direito poderia operar sem o uso desses conceitos indeterminados. Por exemplo, como tratar da boa-fé, se não podemos precisá-la? O Direito, percebendo essa insuperável dificuldade, simplesmente não diz o que é a boa-fé, como também não diz o que ela não é, deixando ao juiz a tarefa decidir o que seja em cada caso em concreto, o que acaba por criar um paradoxo em face do valor da segurança jurídica se considerarmos o que ocorre frequentemente em um processo judicial. Suponha-se, pois, que o autor afirme ter agido com boa-fé, e o que o réu nega, dando um outro conceito de boa-fé. Vem então o juiz e conceitua a seu modo a boa-fé, em termos que podem ser algo distantes tanto da posição do autor, quanto do réu, o que não é incomum ocorrer. Diante de três visões sobre a mesma boa-fé, como defini-la com segurança? De modo que se poderia mesmo perguntar onde podemos encontrar a verdade nos conceitos jurídicos, se alguns deles (aliás, os principais), são indeterminados?
Mas abandonemos a boa-fé, esse conceito assaz complexo. Vamos a algo mais fácil, ou aparentemente mais fácil. Vamos à soberania, da qual tanto se falou nesta curta semana, semana que terminou quando se iniciou o Carnaval, em que realmente somos soberanos, pois como dizia RIBEIRO COUTO, “O Carnaval é a única festa nacional que consola a gente do calor, da queda dos mil-réis, da política, dos programas de salvação pública e dos desastres de aviação militar”.
“Soberania” é mais um desses conceitos indeterminados que o Direito cria a seu talante, aproveitando de ideias que a Ciência Política desenvolve, mas as utilizando de seu jeito (do jeito do Direito). “Soberania”, dizem os bons dicionários, é a qualidade do que é soberano. Mas o que é “soberano”? Os mesmos bons dicionários afirmam que “soberano” é quem tem a autoridade superior. Ou seja, a soberania não é senão o poder do mais forte. O conceito jurídico indeterminado de “soberania” é mais ou menos esse. Entretanto, deve-se perguntar se o mais forte é aquele possui o poder, ou aquele que possui a razão? Opa, estamos indo longe demais, chegando a PLATÃO e seus Diálogos. Mas não, fiquemos só no campo do Direito.
Contentemo-nos com a nossa Constituição de 1988, que ela, quem sabe, poderá nos dizer melhor o que é soberania. Em seu artigo 1o., a Constituição trata de nos avisar que a República Federativa do Brasil tem como fundamento a “soberania”, e mais adiante, no artigo 170, o capítulo que trata dos princípios gerais da atividade econômica, estatui que a ordem econômica deve observar a “soberania nacional”. Portanto, não é qualquer soberania, é a “soberania nacional”, a nossa soberania que deve prevalecer quando se trata da atividade econômica, o que não deixa de ser curioso, porque é precisamente diante do capital, ou seja, do dinheiro, que a soberania nacional enfrenta os seus maiores desafios para se impor como soberania, tanto são os interesses estrangeiros que a querem ver curvada.
Repare o leitor que a Constituição de 1988 não diz o que é soberania. Sendo um conceito indeterminado, é uma abstração, e como toda abstração, comportando uma série de significados. Cada qual que tome aquele que lhe melhor aprouver.