“(…) De qualquer modo, a sociedade melhor não terá nenhuma chance se a sociedade justa e alcançável não for claramente definida”. (JOHN KENNETH GALBRAITH, A Sociedade Justa – Uma perspectiva humana).
É relativamente recente a preocupação dos processualistas com a ideia de um processo justo. Mas o que seria um processo justo? Timidamente, os processualistas começaram a pensar apenas em aspectos puramente formais, como os relacionados ao contraditório e à ampla defesa, tomadas essas garantias sob um viés puramente simbólico. Mas hoje, quando se fala em “processo justo”, começa-se a pensar também no conteúdo da decisão judicial, e se deve reconhecer o enorme avanço que foi dado pelo Código de Processo Civil de 2015 – CPC/2015, ao fixar parâmetros para a aferição daquilo que deve ser considerado como uma “decisão fundamentada” (artigo 489, parágrafo 1o.), em que resulta evidente a preocupação do Legislador com o conteúdo da decisão judicial.
Mas quando a sociedade é injusta, o processo civil pode ser justo? Os processualistas não raro se esquivam desse tipo de questionamento, argumentando que o tornar uma sociedade justa não é tarefa da ciência do processo civil, e que de qualquer maneira é possível que se tenha um processo justo, mesmo que a sociedade seja a mais injusta possível, como a nossa, em que as desigualdades são tão antigas quanto nosso país. Caberia, pois, à economia e à política a construção de uma sociedade mais justa, enquanto à ciência do processo civil apenas fazer o possível para que se tenha um processo justo, como se não houvesse uma relação entre esses termos.
Resulta evidente, contudo, que essa relação existe e é de fundamental importância, na medida em que é papel do processo civil o tornar a sociedade cada vez mais justa, ou seja, se há verdadeiramente um processo justo, as decisões nele proferidas devem fazer o possível para que a sociedade se torne mais justa. E chegamos assim ao papel dos juízes, que são observadores privilegiados da sociedade, e precisamente por força desse ângulo de visão é que se tornaram perigosos aos olhos do capitalismo moderno, pela simples razão de que podem tornar a sociedade mais justa.
Enquanto a magistratura brasileira foi formada essencialmente por integrantes das classes econômicas mais favorecidas, não pareceu ao capitalismo que os juízes representassem um perigo. Mas tão logo surgiu a Constituição de 1988, uma Constituição que, como dizia o conhecido sociólogo FLORESTAN FERNANDES, embora inacabada, representava um considerável avanço em diversas áreas sociais, inclusive na área do Direito, consagrando, por exemplo, o princípio do devido processo legal, tão logo, pois, entrou em vigor a Constituição de 1988 o capitalismo deu-se conta de que, com as ações afirmativas, o Poder Judiciário tenderia a modificar seu perfil, quando integrantes das classes econômicas menos favorecidas pudessem ingressar nas carreiras da magistratura, o que efetivamente ocorreu.
E atento a esse fenômeno, o capitalismo tratou de engendrar mecanismos legais que fariam com que os juízes não pudessem fazer justiça, tolhendo-os o pensamento e o poder, amarrando-os em súmulas e teses vinculantes, editadas obviamente para aqueles temas de interesse do capitalismo. E para ocultar a sua intenção, o capitalismo alegou que a segurança jurídica impunha a criação de institutos como os das súmulas e teses vinculantes.
O que subjaz na criação desses institutos, e que os explica sob a ótica do capitalismo é a ideia de que os conflitos podem e devem ser harmonizados em prol de um bem comum e que esse “bem comum” não pode ser senão aquilo que o Poder (o capitalismo) defina como tal, e não aquilo que os juízes possam decidir. “Processo justo” é aquilo que o capitalismo dirá o que é, e não o que os juízes puderem decidir livremente. Podemos ter uma sociedade mais justa, quando o processo, ele próprio, não é justo?