ARTIFÍCIO OU ARTIFICIAL
Em uma pequena e isolada cidade, deparou-se o juiz com um caso que se revelava com uma complexidade com a qual ele, há pouco na carreira da magistratura, até então não havia lidado. Buscou ajuda nas poucas obras de doutrina de que dispunha, consultou alguns colegas, e nada de útil encontrara que o pudesse ajudar na solução daquele singular caso. Sem outra opção, confiou a seu assistente o problema, embora não confiasse muito em seu conhecimento jurídico.
_ Assistente, tenho uma importante e urgente missão ao senhor.
_ Estou à disposição. Vossa Excelência pode contar comigo.
_ Ao mesmo tempo que é simples, é altamente complexo o que lhe vou pedir, disse o juiz.
_ Muito embora eu não tenha um conhecimento jurídico tão extenso como o de Vossa Excelência, sou assistente há muito tempo e minha experiência prática lhe poderá ser útil. Posso lhe afiançar que, noutros casos, contribui de modo decisivo, trazendo a solução que ao final prevaleceu.
_ Pois bem, senhor assistente, temos aqui um caso que é singularmente complexo, e depois de consultar as obras de que disponho em casa, que não são muitas, não encontrei nenhuma solução. Só me resta a jurisprudência.
_ Então vamos a ela, Excelência. Aliás, ela sempre nos socorre, porque em verdade nela achamos a solução que queremos, tantas são as diferentes posições que se encontram nos julgados. E nada nos impede de juntarmos um acórdão com outro ou outros, formando um retalho que poderá bem ser a solução ao caso.
_ Mas neste caso é diferente. Eu já consultei as diversas fontes da jurisprudência, e o resultado não foi diferente do que sucedeu com a doutrina. O problema jurídico parece insólito.
_ Tenho grande experiência na consulta. Vossa Excelência provavelmente não conhece todas as fontes de jurisprudência. Fique tranquilo. Encontraremos a solução.
Saindo da sala do magistrado, o intrépido assistente foi para a sua mesa e ali, à frente do computador, começou as suas pesquisas, que duraram mais do que ele havia previsto, e ao final delas o resultado foi rigorosamente o mesmo a que o juiz havia chegado.
Lembrou-se o assistente de que isso já ocorrera outras vezes e com outros juízes, aos quais ele havia, digamos, “criado” a jurisprudência. Mas agora havia algo novo. Surgira há pouco a inteligência artificial.
Embora com algum receio, o assistente consultou um site de inteligência artificial, e em questão de segundos, pronto, ele encontrou um caso não parecido, mas idêntico àquele que caberia ao juiz julgar. Bastava, pois, copiar o julgado e levar ao juiz, que o reproduziria na sentença.
Chegou o assistente à conclusão de que a jurisprudência nada é mais do que um artifício de que juízes e advogados se valem quando, sozinhos, não encontram a solução, e que não há assim grande distância entre artifício e artificial, porque a rigor a jurisprudência não é senão um artifício que os operadores jurídicos se valem para fazer sua uma decisão que é de outro, e não seria nada diferente do que ocorre quando se usa da inteligência artificial.
O assistente leu com atenção a solução dada pelo site de inteligência artificial, nele encontrando sólidos e indisputáveis argumentos. Mas como dizer ao juiz que fora a inteligência artificial quem dera a solução? O assistente pensou que talvez fosse melhor contar o milagre, mas não contar o santo. E assim nada disse ao juiz.
A sentença foi feita, uma das partes elogiou a solução, enquanto a outra recorreu, e o processo foi ao tribunal, e não a apenas um tribunal, senão que a dois deles, e a sentença não foi apenas mantida, mas elogiada. Tudo isso consumiu cerca de cinco anos.
Com o trânsito em julgado, não havia mais o que fazer, senão que executar a sentença. Mas o advogado da parte vencida, que em verdade estava convencido de que a solução dada pelo juiz era mesmo a melhor, tratou, ele próprio, de pesquisar a jurisprudência mencionada na sentença, e como não a encontrasse, formulou uma petição ao juiz, solicitando a fonte do julgado de que o juiz se utilizara.
Pois bem, o juiz também procurou e não encontrou a jurisprudência mencionada na sentença. Como também não encontrou o assistente, que havia pedido exoneração do cargo há alguns anos e começara a trabalhar em uma das diversas empresas de inteligência artificial dirigidas exclusivamente a advogados.