É da tradição do processo civil que, em se tratando de um direito subjetivo  personalíssimo, não se o pode transmitir aos sucessores do titular desse direito, o que ocorre em especial com os direitos de família, como, por exemplo, o direito subjetivo ao divórcio, de maneira que, se durante o processo, falece um dos cônjuges, a ação deve ser extinta anormalmente, ou seja, sem que o juiz possa examinar o mérito da pretensão. Em consequência disso, o divórcio não pode ser decretado, porque o direito material invocado na ação (o direito potestativo ao divórcio) terá sido extinto com a morte de um dos cônjuges, e a ação de divórcio não poderá prosseguir, devendo ser extinta, sem julgamento do mérito da pretensão, por força do que estabelece o artigo 485, inciso IX, do Código de Processo Civil. A ação é intransmissível, porque o direito material objeto da ação é personalíssimo.

Que o direito potestativo ao divórcio é personalíssimo, e como tal intransmissível, não diverge a doutrina, e a jurisprudência brasileira até bem pouco tempo atrás entendia que, falecido um dos cônjuges no curso do processo, não havia senão que extinguir anormalmente o processo, por considerar que, além de se tratar de um direito personalíssimo e intransmissível, o falecimento, só por si, determina a extinção da sociedade conjugal, segundo o que prevê o artigo 1.571, inciso I, de maneira que a tutela jurisdicional não poderia ser concedida quanto ao divórcio, porque o casamento fora extinto.

Mas recentemente se modificou esse entendimento, passando uma parte da jurisprudência a admitir a figura do “divórcio pós-morte”, ou seja, ainda que ocorra o falecimento de um dos cônjuges, a ação de divórcio deve prosseguir e receber sentença de mérito, com a decretação do divórcio. Um divórcio “pós-morte”. Na base dessa posição jurisprudencial, está o entendimento de que, a partir da Emenda 66/2010, o direito ao divórcio passou a ser um direito potestativo, de maneira que, se um dos cônjuges exercitou esse direito ao ajuizar a ação, o processo deve prosseguir até que a sentença de mérito seja proferida, mesmo que qualquer das partes tenha falecido no curso do processo. Mas há um intransponível problema nessa solução: é que, em nosso ordenamento jurídico em vigor, o direito potestativo ao divórcio somente pode produzir seus regulares efeitos se houver um pronunciamento jurisdicional, o que significa dizer que não basta a manifestação de vontade de um dos cônjuges, e mesmo a concordância do outro. De resto, não foi a Emenda constitucional 66 que transformou o direito ao divórcio em um direito potestativo. Ele sempre foi um direito potestativo: a referida Emenda apenas tornou isso claro aos operadores jurídicos.

Poder-se-ia argumentar que os cônjuges poderiam ter exercido o mesmo direito ao divórcio, firmando declaração em cartório extrajudicial, já que a lei prevê a figura do divórcio extrajudicial consensual, isso deve ensejar a conclusão de que o fato de ter havido o processo judicial não obsta que o direito potestativo, uma vez manifestado no processo, produza seus efeitos, independentemente da tutela jurisdicional. Esse argumento, contudo, não pode subsistir, porque se há considerar que, instaurado o processo judicial, é em função dele que se deve considerar o suposto direito subjetivo material envolvido e a conformação que o processo lhe dá, considerando o tipo de provimento jurisdicional que deve ser concedido, se procedente a pretensão. Importante adscrever que, no caso da ação do divórcio, o provimento jurisdicional não é meramente  declaratório, senão que é constitutivo, e é por ele que se declara a extinção do casamento pelo divórcio.

Alguém poderia lembrar da antiga controvérsia que se instalou no campo do processo civil entre as teorias unitária e dualista, uma defendendo a ideia de que o direito subjetivo somente existe quando a tutela jurisdicional o cria, ou seja, o direito subjetivo é que nasce no processo, enquanto a outra teoria (a dualista), defendida por exemplo por Chiovenda, entende que o direito subjetivo existe antes do processo e a tutela jurisdicional  apenas declara a vontade concreta da lei a aplicar-se no caso, reconhecendo o direito subjetivo material. Mas há que se considerar que, mesmo os adeptos da teoria dualista, não afirmam que, em se tratando de um direito subjetivo que o Legislador tenha previsto em Lei, condicionando seu reconhecimento a que se o declare existente por meio do processo, mesmo esses autores, pois, não dizem que, nessa especial circunstância, possa ser dispensado o processo judicial.

Sobreleva considerar que é da tradição do direito brasileiro o fixar o direito ao divórcio como um direito subjetivo personalíssimo, o que significa dizer que somente os cônjuges podem exercitar esse tipo de direito subjetivo, e o fato de se o considerar como um direito potestativo não transmuda a sua natureza jurídica, que permanece como um direito personalíssimo, e como tal intransmissível aos herdeiros do cônjuge. A especial relevância da família em nosso ordenamento jurídico em vigor, e a sua proteção em nível constitucional, é que justificam que o Legislador tenha erigido o direito ao divórcio como um direito personalíssimo, em uma tradição do direito brasileiro que já vai longe no tempo.

Há também por considerar a possibilidade de o autor da ação de divórcio manifestar a vontade da desistir da ação, e tanto  o direito ao divórcio é um direito potestativo, quanto também o é o direito de desistir da ação, mesmo se considerarmos o que prevê o artigo 485, parágrafo 4o., do CPC/2015, a dizer, a possibilidade de o réu não concordar com a desistência, se manifestada após a contestação. Com efeito, a jurisprudência é firme no entendimento de que se deve considerar como acentuadamente excepcional a resistência do réu à manifestação de desistência da ação, o que evidentemente se deve aplicar também no caso da ação de divórcio. Assim, supondo que o autor desistisse da ação de divórcio, e que se homologasse essa manifestação de vontade, extinguindo-se o processo, poder-se-ia considerar decretado o divórcio? Evidentemente que não.

Mas qual será o sentido prático envolvido na posição jurisprudencial que defende o prosseguimento da ação de divórcio, malgrado a extinção do casamento pela morte de um dos cônjuges? Simples assim: modifica-se o regime de sucessão, pois que, decretado o divórcio, o ex-cônjuge deixa de ter direito à herança, participando apenas da divisão dos bens comuns, segundo o que dispuser o regime de bens. Não podemos esquecer que, segundo a Lei brasileira, a capacidade para suceder é a do tempo da abertura da sucessão, e essa abertura se dá com a morte, de maneira que, no momento em que o cônjuge morreu, deve-se aplicar o regime jurídico da sucessão então em vigor e aplicável, o que significa dizer que se, ao tempo do óbito, o cônjuge não estava divorciado, senão que estava casado, porque o processo ainda não havia recebido sentença, não se pode modificar o estado civil do falecido, porque o momento da morte é aquele que define os pressupostos para a sucessão. O prosseguimento da ação de divórcio, a despeito do falecimento de um dos cônjuges, criaria, portanto, uma situação fictícia apenas para modificar o regime legal de sucessão, o que não se pode admitir.

Vamos ver se temos ou não razão, e o veremos com base na realidade das coisas, que é sempre boa conselheira aos operadores do Direito e em especial aos juízes. Pensemos, pois, em alguém que terá acabado de entrar com a ação de divórcio, e se ele poderá dizer que já está divorciado. Evidentemente que ele até pode pensar que o esteja, mas a verdade é que não está. Alguns juristas, mais realistas que o rei, dirão que sim.

(Importante ressaltar por fim que, concedida a tutela de evidência para o fim de decretar-se liminarmente o divórcio, nessa específica situação, ainda com o óbito de um dos cônjuges durante o processo, a sentença deverá ratificar a tutela de evidência, lembrando-se que essa tutela não é meramente cautelar, senão que satisfativa.)

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