Em sua habitual coluna no jornal português “Público”, edição de hoje, FRANCISCO TEIXEIRA DA MOTA vem de se referir a um interessante julgado emanado do Tribunal da Relação do Porto, em que se controvertia sobre a seguinte situação: um condômino, alegando experimentar prejuízos em sua unidade, decorrentes de infiltrações causadas por águas das chuvas, demandara contra o condomínio, pretendendo se lhe cominasse a obrigação de realizar as obras de reparação. Em primeiro grau, o juiz deu-lhe razão. Mas o Tribunal não.
Diz FRANCISCO TEIXEIRA DA MOTA que o Tribunal de Porto, com uma visão “holística”, fez aplicar o artigo 334 do Código Civil Português, que estabelece o seguinte: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”. Entendeu o Tribunal, pois, que como o condômino estava há cinco anos em mora com as suas obrigações condominiais, não poderia pretender que o condomínio reparasse o que quer que fosse, na medida em que, em mora, o condômino não poderia exigir o que ele próprio não cuidara fazer. Aplicando a “velha figura” do abuso direito, o Tribunal deu razão ao condomínio, reformando a sentença.
Tomemos, pois, este interessante julgado e façamos com ele um paralelo do que muito provavelmente ocorria, tivesse o mesmo caso sido julgado segundo as normas do Direito brasileiro, observando-se o que distingue o instituto do abuso de direito, segundo a conformação que lhe foi dada pelo nosso Código Civil por seu artigo 187 (“Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”), quando cotejado com o artigo 334 do Código Civil português (“”É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”).
Há uma significativa mudança de perspectiva sob a qual o Legislador brasileiro trata do abuso de direito, baseada essa perspectiva no conceito de “ilicitude”, enquanto aos olhos do Legislador português outra deve ser a perspectiva: a da “ilegitimidade”. Esses conceitos não se confundem. Quando se fala em “ilegitimidade”, como faz o artigo 334 do Código Civil português, pensa-se em primeiro plano no campo da Moral, que assim projeta importantes e decisivos efeitos além de seu raio de ação, para alcançar o mundo do Direito, no caso o direito positivo, para assim determinar que uma determina ação, ou omissão, deva ser analisada sob aquilo que a moral exigiria, em um sentido que obviamente remete à ideia de KANT acerca da distinção entre Moral e Direito.
De maneira que se deve concluir que, no direito positivo português, o instituto do abuso de direito traz da Moral aquilo que o conforma como norma de direito positivo, formando seu principal núcleo, o que justifica tenha o Tribunal da Relação do Porto, no julgamento mencionado, feito um cotejo entre dois direitos subjetivo, ainda que não envolvidos diretamente no caso em questão, porque não há dúvida de que o direito subjetivo invocado pelo condômino não tem nenhuma relação lógico-jurídica com o seu dever de pagar as cotas condominiais, ou seja, com o direito do condomínio de as cobrar, na medida em que o caso versa exclusive sobre danos causados em sua unidade residencial por infiltrações, em um contexto em que ele atribuía omissão ao condomínio.
Essa ausência de relação jurídico-jurídica entre esses dois direitos subjetivos é que permite afirmar que, tivesse o caso em questão sido julgado por um Tribunal brasileiro, e certamente a figura do abuso de direito não entraria em questão, porque esse instituto, tal como construído pelo Código Civil brasileiro em seu artigo 187, baseia-se, não na ilegitimidade, mas na ilicitude, o que obsta que o intérprete socorra-se exclusivamente da Moral, para o obrigar fique apenas no campo do Direito, apenas com um lance de olhos naquilo que a Moral poderia supeditar.
Donde a conclusão de que, julgado segundo o Direito positivo brasileiro, ao condômino reconhecer-se-ia o direito subjetivo a contar com a reparação dos danos, ainda que em mora com o pagamento das cotas condominiais, porque o instituto do abuso de direito em nosso ordenamento jurídico em vigor não tem o alcance, para fora do campo do Direito, que esse mesmo instituto tem no direito português.