Está no Congresso Nacional, em banho-maria, a discussão sobre a proposta de emenda constitucional (PEC 65/2023) que faz consideravelmente ampliar a autonomia do Banco Central, transformando-o em uma “instituição de natureza especial de direito privado”, o que fará, na prática, a tornar ainda mais emblemática a autonomia operacional que já lhe foi dada pela Lei Complementar 179/2021, sobretudo ao colocá-lo como órgão de direito privado, e, portanto, como representante dos interesses dos grandes grupos econômicos.
Primeiro aspecto e o mais importante a ser considerado diz respeito à manifesta inconstitucionalidade dessa Lei Complementar, porque ela claramente conflita com o prevê o artigo 192 da Constituição de 1988, sobretudo a partir da nova redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional de número 40/2003, ao estabelecer que “O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram”.
Se o sistema financeiro nacional deva ser estruturado de modo que se atenda sobretudo aos interesses da coletividade, e, se em um Estado de Direito e em um regime democrático, cabe sobranceiramente ao Poder Executivo ponderar e decidir sobre o que convém aos interesses da coletividade, como é juridicamente possível que se tenha dotado o Banco Central (que é apenas um órgão do Poder Executivo), a autonomia para, em nome próprio e consultando apenas seus próprios interesses (e evidentemente os interesses dos grandes grupos econômicos), a soberana decisão sobre diversas matérias, como a da taxa dos juros? Não há, com efeito, exemplo de uma inconstitucionalidade tão evidente como essa.
O que está a ocorrer no Brasil, de alguns anos a esta parte, não é a introdução empírica de um sistema parlamentarista de governo, como se o Poder Executivo tivesse querido delegar funções e decisões que lhe são próprias, como, por exemplo, a de definir para onde o dinheiro do orçamento público deve ir, tema que está hoje em mãos do Congresso Nacional. O mesmo se pode dizer da autonomia do Banco Central para, a seu bem-querer, definir a taxa dos juros, como se esse fosse um assunto que é apenas de seu interesse (e dos grandes grupos econômicos, dos bancos em especial), como se o Poder Executivo não devesse sequer ser ouvido a respeito, ou como se à população não coubesse senão que respeitar o que o Banco Central decide.
Quando se tem esse tipo de situação, não é o regime parlamentarista que está na prática a ser aplicado, o que já seria grave. Mais a gravidade é ainda maior porque o que se configura é uma clara e inconstitucional usurpação de poder político, que indevidamente passa do Poder Executivo a mãos que representam interesses que não são nada públicos. Ou seja, além dos Poderes da União (Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário) temos também um quarto poder, que não é a Imprensa, não é o Ministério Público, senão que é o poder dos interesses privados, cuja independência elimina o Estado de Direito, na medida em que afeta diretamente o conceito de Democracia.
A propósito, ssoubemos hoje, pela imprensa, que um ex-presidente do Banco Central foi convidado a aceitar (e aceitou) um cargo em uma grande instituição financeira que, aliás, acaba de criar o cargo, precisamente para nele colocar o ex-presidente do Banco Central. A quem interessa a autonomia do Banco Central?